SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “O Brasil tem trabalhado muito na questão da pobreza monetária, nós temos programas importantíssimos, como o Bolsa Família, o BPC [Benefício de Pestação Continuada]. Isso é uma parte muito importante, mas não é só isso”, argumenta Laís Wendel Abramo, secretária nacional da Política de Cuidados e Família, órgão ligado ao Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.

“A pobreza de tempo é algo que afeta muito a vida das mulheres.”

Ser pobre de tempo, diz Abramo, está intrinsecamente ligado a ser responsável por um trabalho invisível: o de cuidado. No Brasil (e em boa parte do mundo), esse é um problema que tem gênero. Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que, em 2022, as mulheres passaram o dobro de tempo realizando tarefas domésticas em relação aos homens. Isso traz consequências não só pessoais mas também econômicas para as brasileiras.

Em dezembro de 2024, foi sancionada a Política Nacional de Cuidados, que estabelece diretrizes para a elaboração de políticas públicas direcionadas a quem recebe cuidados e também quem cuida. Ela determina que seja criado um Plano Nacional de Cuidados, cuja elaboração é liderada por Abramo.

Em entrevista à reportagem, a secretária afirma também que é preciso uma transformação cultural nas famílias e mudanças nas leis que regem os direitos das trabalhadoras domésticas. “A PEC das Domésticas foi um avanço, só que ela tem problemas graves”, diz. “O principal deles é que só se reconhece vínculo trabalhista de quem trabalha três ou mais dias na mesma casa. As diaristas ficam sem nenhum direito.”

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PERGUNTA – A Política Nacional de Cuidados prevê a elaboração de um plano nacional, com ações concretas. Quando esse plano deve ser lançado pelo governo?

LAÍS WENDEL ABRAMO – O plano está em estado bastante avançado de elaboração. Ele foi construído durante o ano passado e esperamos que seja lançado nos próximos três meses. Não depende de mim, isso já agora é uma instância superior do governo.

P – Quais as prioridades desse plano? O que ele deve propor?

LWA – A marca principal é olhar ao mesmo tempo para quem cuida e para quem precisa do cuidado. A outra ideia central é que o trabalho de cuidado é fundamental. Sem o cuidado, a sociedade não funciona, a economia não funciona, a força de trabalho não se reproduz. Portanto, o cuidado também é um bem público que tem uma função social muito importante.

P – E em termos de ações concretas?

LWA – É a primeira vez que existe no Brasil uma Política Nacional de Cuidados, mas isso não quer dizer que a reivindicação pelos cuidados já não existisse, e que não existam importantes serviços de cuidado, principalmente nos grandes sistemas como o SUS (Sistema Único de Saúde), o Sistema Único de Assistência Social e a rede de educação pública. O que a gente está propondo agora é uma maior integração e principalmente esse olhar para quem cuida.

O plano contém, por exemplo, propostas de extensão da cobertura de serviços já existentes, como a jornada das creche e a cobertura da educação integral. A creche é para criança? Claro que é, mas ela também é fundamental para que a mãe, e aqui eu gostaria de dizer pai e mãe, mas a gente sabe que na grande maioria são as mães.

As grandes linhas são três: a ideia de garantir o direito ao cuidado para as pessoas que dele necessitem. O segundo é garantir políticas públicas de qualidade que pensem em quem cuida. O terceiro é a promoção do trabalho decente para todas as trabalhadoras e trabalhadores remunerados do cuidado, entre eles as trabalhadoras domésticas.

P – O cuidado não remunerado acontece na maioria das vezes dentro do âmbito familiar. Como uma política de governo pode regular isso?

LWA – Um dos eixos do plano é a transformação cultural. A gente sabe que está muito arraigado mesmo. A menina você dá de presente uma bonequinha, uma cozinha, e para o menino você dá uma bola, um carro.

Tem que ficar muito claro que com essa ideia da política de cuidados e da importância do Estado, das políticas públicas, que a gente não está querendo tirar o papel da família. A família tem um papel muito importante e as políticas são também para apoiá-la nessa necessidade de cuidar dos seus.

A gente está preparando campanhas que vão dizer essas coisas que eu estou dizendo aqui muito resumidamente. Vai mudar a cabeça das pessoas da noite para o dia? Não.

Agora, como é que se transforma além da cultura? Quando se coloca a possibilidade de uma família que mora na periferia, que tem menos condições de comprar esse serviço do mercado, de acessar uma creche pública em tempo integral, uma escola em tempo integral, um centro-dia para pessoa idosa, por exemplo, você está possibilitando que essa família veja outras alternativas para o cuidado que não seja só o trabalho da mulher.

P – Uma das questões discutidas no âmbito do cuidado globalmente é justamente a “pobreza de tempo”, que afetaria mais as mulheres, prejudicando as oportunidades, inclusive economicamente falando. Como se resolve isso?

LWA – Se o trabalho de cuidado está a cargo da esposa, ou da filha, ou da mãe, que tempo essa mulher vai ter para cuidar de si própria, de sair para trabalhar? Isso provoca pobreza monetária, isso está violando o direito delas ao trabalho, à educação, e também o direito à geração de renda, à autonomia econômica.

O Brasil tem trabalhado muito na questão da pobreza monetária, nós temos programas importantíssimos, como o Bolsa Família, o BPC. Isso é uma parte muito importante, mas não é só isso. A pobreza de tempo é algo que afeta muito a vida das mulheres.

Como mudar isso? Primeiro, com a corresponsabilização. Se a mãe consegue dividir melhor com o pai esse trabalho todo de cuidado, ela vai aumentar o tempo que ela tem à disposição dela. Mas se ela tem à sua disposição uma creche, um centro de serviços públicos, ela também vai conseguir recuperar esse tempo para fazer as outras coisas.

P – A sra. mencionou as trabalhadoras domésticas. Nesse caso, já existe a PEC das Domésticas. O que que é possível avançar? O que não funcionou?

LWA – A PEC das Domésticas foi um grande avanço, só que ela tem problemas graves. O principal é só reconhecer o vínculo trabalhista de quem trabalha três dias ou mais para o mesmo empregador. As diaristas não têm nenhum direito trabalhista ou previdenciário.

Existem diversos países da América Latina que reconhecem o pluriemprego, ou seja, se você contrata uma trabalhadora doméstica que vai um dia por semana na sua casa, você tem que fazer a contribuição equivalente àquele dia. Digamos que seja um dia por semana, você vai contribuir o equivalente a quatro dias por mês.

Outra grande reivindicação delas é a elevação da escolaridade, o acesso à formação profissional. Isso é um dos carros-chefes do nosso plano, e nós já estamos executando, que é uma edição especial do programa Mulheres Mil, do Pronatec [Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego]. Nós já ofertamos 900 vagas em seis cidades do país, e elas saem com uma certificação profissional através de um instituto federal.

P – Em relação à implementação dessas ações, a política brasileira ainda é um território de predominância masculina, e o cuidado é visto como um assunto feminino. Isso torna mais difícil impulsionar políticas públicas de cuidado?

LWA – É, dificulta mesmo, né? Porque essa falta de presença da mulher na política tem a ver com machismo, com misoginia, com violência de gênero, tudo isso, mas também tem a ver com pobreza de tempo, né? A pobreza de tempo também se reflete aí na dificuldade da participação na vida pública.

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Laís Wendel Abramo, 70

Secretária Nacional de Cuidados e Família do Ministério do Desenvolvimento Social, é doutora em sociologia pela USP. Foi diretora da divisão de Desenvolvimento Social da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), entre 2015 e 2019 e diretora da OIT (Organização Internacional do Trabalho) no Brasil, de 2005 a 2015.