SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Eunice Michiles foi recebida no Senado com festa em 1979, ao se tornar a primeira mulher a ocupar o cargo no período republicano no Brasil.

Então com 49 anos, a paulistana eleita pelo Amazonas, hoje com 95, recebeu chocolate e buquês de flores e teve até poesia recitada em sua homenagem.

Naquela época, o plenário do Senado não tinha nem sequer um banheiro feminino para as congressistas -construído apenas em 2016. Antes, as mulheres precisavam utilizar um espaço em um restaurante anexo ao plenário.

“Quando eu entrei no Senado, fui ‘muito bem recebida’, com flores, poesias, muita badalação. Mas percebi o seguinte: eu não era uma colega que estava chegando. Era uma senhora, uma dama”, disse Michiles em entrevista à BBC Brasil em 2013.

Eleita como primeira suplente de João Bosco, morto três meses após assumir o cargo no Senado, ela encontrou algumas resistências para se manifestar, inclusive levando uma bronca de um colega por ter se atrasado em uma sessão.

Hoje com 95 anos e morando em Brasília, a paulistana Michiles veio de família com origem alemã. Nascida em 1929 em Santo Amaro, estudou e depois lecionou em escolas adventistas, sua religião.

Só saiu de São Paulo após se casar com Darcy Augusto Michiles, nascido em Maués (a 356 km de Manaus), cidade na divisa com o Pará da qual foi prefeito. Eles se conheceram na capital paulista; ela se mudou para o município amazonense de 66 mil habitantes em 1950.

Com experiência docente, ocupou cargos de direção em escolas da cidade amazonense e entrou na vida política em 1974, quando foi eleita deputada estadual, com 4.172 votos pela Arena, partido que ela escolheu para evitar atritos com o governo após o marido, do PTB, ser cassado pela ditadura por seu partido e seus posicionamentos sobre educação.

Depois, a sigla do regime militar insistiu para que ela concorresse ao Senado apesar de sua vontade de pleitear a reeleição.

A ideia era fazer frente ao MDB, que passou a incluir mulheres nas chapas às cadeiras, mas deu força aos homens, já que os votos de cada candidato seriam aglutinados na legenda, que escolheria quem seria eleito. Michiles tinha potencial de angariar eleitores, tanto que conseguiu quase 33 mil votos, a terceira mais votada entre todos os concorrentes no estado.

Foi a segunda senadora da história do Brasil, a primeira da República e a primeira diretamente eleita. Antes dela, a princesa Isabel, por ter título de nobreza, possuía direito a assento vitalício no Senado do Brasil Império apesar de nunca ter assumido o cargo.

Alguns dos projetos propostos por ela foram a redução de jornada de trabalho, com diminuição proporcional de salário, para a mulher com filhos, além de acabar com a possibilidade de homem casado em comunhão de bens contratar empréstimos e dar o patrimônio familiar como garantia sem consentimento da esposa.

Outra proposta foi a revogação de artigo no Código Civil de 1916 que autorizava o homem a “devolver” a esposa aos pais caso ela não fosse virgem. Nenhuma delas foi aprovada -algumas foram rejeitadas em votação, e outras, nunca pautadas.

Em entrevista à BBC, Michiles afirmou que sua entrada no Senado foi uma “pequena revolução”, mas que não era tratada como uma senadora.

Disse ainda que sua experiência política foi muito difícil, porque, segundo ela, não era de bom tom que a mulher se manifestasse ou falasse um pouco mais alto e aparecesse, algo necessário na política.

“Um dia, me atrasei no Senado, e um senador de dedo em riste me disse ‘não faça mais isso’. Fui murchando, como se tivesse [levado uma bronca] do meu pai. Outro senador respondeu: ‘Minha filha, não permita que façam isso com você. Você é tão senadora quanto eles’. Me dei conta: era mesmo. A partir daí, senti que tinha a responsabilidade de me colocar à altura deles.”

A reportagem procurou familiares da senadora, que não quiseram conceder entrevista.

Apesar das dificuldades no Legislativo, Michiles tinha um bom trânsito com o Planalto, tendo espaço com o presidente João Figueiredo, último general da ditadura militar.

Ela foi uma das responsáveis por formar um grupo político que convenceria o então mandatário a nomear Esther Figueiredo Ferraz no MEC (Ministério da Educação), com sucesso. Esther tornou-se a primeira mulher a ser ministra do Estado do Brasil.

Michiles votou em Tancredo Neves no Colégio Eleitoral de 1985, e ao fim da ditadura, deixou o Senado. Foi eleita deputada federal pelo PFL no ano seguinte, integrando a Assembleia Constituinte que promulgou a Constituição de 1988. Não obteve êxito nas eleições de 1990, quando tentou a reeleição, já pelo PDC.

Foi, depois, eleita conselheira do TCE-AM (Tribunal de Contas do Estado do Amazonas), chegando à vice-presidência do órgão até se aposentar, em 1999. Um de seus quatro filhos, Humberto Michiles, seguiu carreira na política, tendo sido prefeito de Maués e deputado estadual e federal.

A pesquisadora Michelle Vale, autora do livro “Mulheres no Poder – A trajetória política de Eunice Michiles, a primeira senadora do Brasil” (Appris Editora), diz que Michiles sempre se considerou de direita, inclusive por seu contexto, sendo uma mulher branca e evangélica.

“A mentalidade dela naquela época era o seguinte, se ela quisesse conseguir alguma coisa, ela tinha que ser da situação, porque na situação ela iria conseguir pedir algo e possivelmente ser atendida”, afirma.

Ela diz que Michiles teve seu trabalho muito focado na desigualdade de gênero existente. Segundo ela, a atuação foi invisibilizada diante das resistências e do machismo à época, mas Michiles deixou um legado de abertura de portas do Legislativo para as mulheres.

“Eunice Michiles abriu as portas para as muitas mulheres, para que elas pudessem pensar na política, não mais só como espaço para os homens, mas para as mulheres, para que esse espaço fosse entendido como um espaço de discussão de direito para as mulheres.”