SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um avião cai em um lugar ermo, deserto. Um grupo de meninos sobrevive ao acidente e busca se organizar. Mas à medida que o tempo passa e a comida se torna mais escassa, eles se aproximam cada vez mais de seus instintos primais.
A trama pertence, é claro, a “Senhor das Moscas”, clássico de William Golding que foi leitura obrigatória para gerações de estudantes. Mas basta trocar o gênero do sujeito das frases para o feminino para que elas passem a descrever enredos de uma série de produções televisivas recentes.
“Turma de 2007”, por exemplo, acompanha jovens forçadas a enfrentar juntas um cataclismo que se abate sobre a Terra no seu encontro de dez anos de formadas. “The Wilds: Vidas Selvagens” mostra o que um grupo de adolescentes acha que é sua luta por sobrevivência, mas na verdade é um experimento social, em uma ilha deserta depois de um acidente aéreo. E “Yellowjackets” retrata os 19 meses que um time de futebol feminino júnior passa perdido na selva e os impactos desse período na vida de suas integrantes anos depois.
As três seguem as convenções de um tipo de narrativa cujos representantes incluem de “Robinson Crusoé” a, bem, “Largados e Pelados” –o thriller de sobrevivência, sobre personagens que enfrentam situações hostis extremas.
Se simplesmente trocar os protagonistas dessas histórias por mulheres pode parecer algo menor, sem grandes consequências, quem estuda esse tipo de narrativa tende a discordar.
Em primeiro lugar, porque ele é associado a uma fantasia colonial tipicamente masculina, na qual o homem é entendido como alguém capaz “de se aventurar na natureza selvagem e sobreviver somente devido à sua própria astúcia e suas habilidades”, afirma Jessamy Gleeson, professora de literatura na Universidade Deakin, na Austrália.
O problema é que essa crença foi profundamente nociva para as vítimas da colonização, prossegue ela. Afinal, a moral básica desses thrillers de sobrevivência é de que se deve conquistar o ambiente ao seu redor ao invés de se viver como uma parte dele.
Além disso, quando incluem jovens adultos –caso de alguns dos maiores fenômenos da cultura pop da última década, vide “Jogos Vorazes”–, essas histórias também estão propondo novas visões sobre a estruturação da sociedade. Thrillers de sobrevivência protagonizados por mulheres representariam, nesse sentido, formas de explorar um sistema de governança e de autogoverno exclusivamente femininos.
De fato, todas as produções citadas têm entre seus principais motes a possibilidade de uma reorganização social longe do patriarcalismo.
O curioso é que essa mesma ideia foi motivo de chacota quando circularam, em 2021, rumores de que uma adaptação cinematográfica de “O Senhor das Moscas” com um elenco 100% feminino estaria sendo produzida em Hollywood.
Sobraram internautas dizendo que um remake do tipo não fazia sentido. Uma publicação afirmava que o filme se resumiria a “um grupo de mulheres pedindo desculpas umas às outras de novo e de novo até todo mundo morrer”. “O que elas vão fazer? Colaborar até a morte?”, questionava outro.
Mas comentários como esses, diz um artigo sobre “Yellowjackets” assinado por Gleeson ao lado de Alyson Miller e Eleanore Gardner, ignoram a “realidade pervasiva da misoginia internalizada” e sugerem que bastaria remover os homens da narrativa para que o patriarcado fosse superado.
O texto acrescenta que essas críticas também parecem ignorar a brutalidade da experiência feminina, em especial a adolescente. Ou, como afirmou Karyn Kusama, diretora de “Yellowjackets”, em uma entrevista ao New York Times, a verdadeira “natureza selvagem” é o caos interior perene que as mulheres vivem.
A produção, que estreou sua terceira temporada em fevereiro e desde então tem lançado um novo episódio por semana, talvez seja a mais bem-sucedida dos três thrillers de sobrevivência femininos citados.
Gleeson aponta que ela não escapa de repetir elementos dessas narrativas que poderiam ser mais problematizados, como a caracterização da mata como um lugar ameaçador, que abriga uma presença sobrenatural supostamente maligna.
“A natureza selvagem só é selvagem para quem não vive lá, da mesma forma que um lugar só é considerado remoto por quem vive longe dele”, afirma a pesquisadora. “Tendemos a esquecer que os povos originários ‘sobrevivem’ há milhares de anos.”
Mesmo assim, a correlação que a narrativa faz entre a turbulenta vida interior das personagens e a floresta cheia de mistérios em que elas caem parece ter ressoado entre o público, assim como a opção por mostrar suas protagonistas muitos anos depois do período em que elas viveram na selva, aos 40 e poucos anos.
Melanie Lyskey, que interpreta a versão adulta de Shauna, uma das quatro sobreviventes que guiam a narrativa, diz que a capacidade de “Yellowjackets” de criar personagens tão multifacetadas apesar de seu numeroso elenco chamou a sua atenção desde quando ela leu o roteiro do episódio-piloto.
Ali, era permitido às mulheres ser tudo o que elas são e podem ser, afirma a atriz, “zangadas, calmas, tristes, felizes, sensuais”.
Essa gama de humores só faz aumentar à medida que a história progride. As únicas emoções de que as atletas jamais se aproximam talvez seja justamente a docilidade e a aquiescência tão associadas às mulheres.
Em paralelo a essa onda de thrillers de sobrevivência feminino, uma nova abordagem do gênero parece surgir no horizonte. Ao menos dois longas recentes, ambos desenhos animados, retratam o confronto com um ambiente hostil típico dessas narrativas, mas sob a perspectiva de protagonistas não humanos.
Eles são “Robô Selvagem” e “Flow”, centrados em um autômato e um gato que sobrevivem ao fim do mundo, respectivamente –o segundo acaba de ganhar o Oscar de melhor animação.
Gleeson afirma que, também como os representantes femininos da tendência, esses filmes parecem estar ao menos parcialmente ligados à ansiedade gerada pela crise climática. “À medida que buscamos entender, enfrentar ou negar os seus perigosos impactos para a humanidade na Terra, projetamos nossa humanidade em personagens não humanos”, especula a pesquisadora.
Turma de 2007
Onde: Amazon Prime Video
Classificação: 16 anos
Autoria: Kacie AnningElenco Emily Browning, Megan Smart, Caitlin Stasey
Produção: Austrália, 2023
Link: https://www.primevideo.com/-/pt/detail/Turma-de-2007/0Q8AD7QIVNCCG6AVWP4OPXD6GE
Acessibilidade: Closed Caption (legendas ocultas)
The Wilds
Onde: Amazon Prime Video
Classificação: 16 anos
Autoria: Sarah Streicher
Elenco: Rachel Griffiths, Sophia Ali, Shannon Berry
Produção: EUA, 2020-2022Link: https://www.primevideo.com/-/pt/detail/THE-WILDS—VIDAS-SELVAGENS/0JXO0Y1EY6YW6RWRI3989XLG2B
Acessibilidade: Closed Caption (legendas ocultas)
Yellowjackets
Onde: Paramount+
Classificação: 16 anos
Autoria: Ashley Lyle, Bart Nickerson
Elenco: Christina Ricci, Melanie Lynskey, Juliette Lewis, Sophie Nélisse
Produção: EUA, 2021
Link: https://www.paramountplus.com/br/shows/yellowjackets/
Acessibilidade: Closed Caption (legendas ocultas)