SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ao retornar da noite com um astro dos sonhos, Silmara encara as decepções de voltar à fábrica em que trabalha. A atriz Rosanne Mulholland estampa o sofrimento de uma vida inteira e seus cabelos loiros são lambidos pelo vento, que revela madeixas morenas e sua verdadeira natureza. A paisagem de um bairro operário ocupa a tela gradualmente e a põe como representante de uma classe que sonha superar limites.

Em outro filme, a personagem de Fernanda Vianna dorme na casa da irmã nas ruas de uma São Paulo periférica. Da obra final do diretor Carlos Reichenbach, “Falsa Loura”, ao longa mais recente da cineasta Juliana Rojas, “Cidade; Campo”, essas e outras produções brasileiras passaram pelo mesmo olhar criativo quando chegaram à ilha de edição.

“São os filmes que pedem essas escolhas. Algumas imagens não cumprem todos os sentimentos que queremos transmitir. É daí que surgem as sobreposições. Costumo dizer que não proponho nada, eu apenas acompanho os filmes”, afirma Cristina Amaral, de 71 anos.

As fusões, como é conhecido o recurso cinematográfico em que a troca entre duas imagens as mantém juntas por alguns segundos, se tornaram uma de suas marcas registradas.

Com mais de 60 títulos na carreira, a montadora brasileira descobriu sua paixão pela área durante o curso de cinema na ECA-USP, quando foi aluna da professora Maria Dora Mourão, hoje diretora da Cinemateca Brasileira.

Seja pela escolha entre os melhores takes para os planos de uma cena, por estabelecer a extensão ideal de gestos ou expressões do elenco, ou pelo planejamento dos cortes que levam a narrativa adiante, a montagem é um sucessor fundamental das filmagens.

É durante essa etapa que o material gravado é organizado softwares de edição de vídeo, encontra a sua verdadeira ordem –podendo remodelar ideais da direção ou do roteiro– e atinge seu tempo de duração.

“Quando entro em um novo trabalho, peço aos diretores que me mandem todas as informações possíveis. É o momento de compreender a ideia e a cabeça que quer gerar aquele filme. Mas assim que começo a montar, não volto ao roteiro. Não posso estar presa ao passado e ignorar a vida daquele processo”, diz Amaral.

Com o turbilhão de transformações e vozes centralizadas num filme, ela diz que o cinema lhe permitiu conhecer lugares onde sequer pisou e cita o cinema iraniano como um de seus favoritos.

Sua versatilidade mistura a ficção e o documentário e perpassa diferentes ícones do audiovisual brasileiro, filiados especialmente a movimentos subversivos como o cinema marginal e derivados –reconhecidos por traduzir a agitação política da época e renegar estratégias comerciais.

Além das colaborações com ‘Carlão’ –expoente dos filmes que determinaram o cinema da Boca do Lixo–, suas credenciais também incluem o ritmo opressivo de “Serras da Desordem”, documentário sobre o massacre da tribo Awá-Guajá realizado em 2006 por Andrea Tonacci.

Outro de seus feitos, esse lançado em 2022, é a construção paciente do grupo de motoqueiras que protagoniza “Mato Seco em Chamas”. Codirigido por Adirley Queirós e Joana Pimenta, o filme acompanha uma gangue feminina que tenta controlar sua região ao produzir a própria gasolina.

O encontro entre temas críticos e a linguagem poética se tornou um interesse natural, e a trajetória da montadora passou a ser pautada pela fuga à normalidade. Amaral rejeita códigos comerciais em prol de um estilo único, dentro e fora do Brasil –em 2020, ela recusou um convite da Academia para integrar o corpo de votantes do Oscar.

Ela acredita que jovens cineastas podem partir da mesma rebeldia dos mestres com quem trabalhou. “Eu vejo muito frescor em trabalhar com eles. Estamos sempre buscando algo novo, o que é cada vez mais raro em tempos em que os caminhos surgem todos laceados. Cada filme traz um sonho muito presente.”

Distante da disputa pelas salas tradicionais, um de seus últimos trabalhos até o momento foi lançado na Mostra de Tiradentes, no início de 2024. “Eu Também Não Gozei” acompanha a vida de uma mulher que persiste na busca pela identidade do pai de seu bebê e mostra a adaptação da assinatura de Amaral ao registro mais imediato e auxiliado por câmeras de celular.

No mesmo ano, ela também foi homenageada pelo Cabíria Festival, mostra anual que celebra filmes feitos por mulheres, e ganhou uma retrospectiva com alguns de seus trabalhos.

São espaços que se distanciam de regras e padronizações impostas por mercados como o da publicidade e dos streamings.

“Não deveríamos estar fazendo filmes para arrecadar altas bilheterias. Deveríamos estar pensando em filmes que possam ser lembrados daqui a 100 anos. Eles estão tentando formatar a música, o cinema, a arte. Estão tentando formatar esses milagres”, diz ela.

Em relação a algumas políticas culturais, embora reconheça a importância dos editais para filmes brasileiros, Amaral diz que a desobediência pode ser de grande ajuda.

“O edital vai querer te engessar, te colocar numa caixa e ficar te cobrando. Você precisa mentir pro edital se quiser preservar seu olhar. Nossa visão é a única coisa com que podemos contribuir para o mundo.”