Presidente afirma que há invasão na fronteira, mas organizações de direitos civis contestam o argumento na Justiça
JULIA CHAIB
CIUDAD JUÁREZ, MÉXICO, E EL PASO, EUA (FOLHAPRESS) – Ao afirmar que existe uma invasão na fronteira dos Estados Unidos com o México, o presidente Donald Trump não criou apenas uma bandeira de discurso. Ele tentou pavimentar a estrada legal para garantir que seus decretos fiquem de pé diante de tribunais. Suas medidas para fechar a fronteira, no entanto, enfrentam uma enxurrada de ações judiciais.
O republicano assinou no dia 20 de janeiro, poucas horas após tomar posse, uma série de decretos mirando aquela região do país. O objetivo declarado é suspender a entrada de imigrantes nos EUA, inclusive aqueles que buscam asilo ou refúgio. Ampliou ainda a vigilância e decidiu enviar militares à fronteira. Neste sábado (1º), o governo anunciou que enviará mais 3.000 homens.
Apontar uma invasão seria a base para dar legalidade ao atos do presidente, que, na prática, contrariam leis internacionais e da própria Constituição americana. O argumento consta em uma ação protocolada pela ACLU (União Americana Pelas Liberdades Civis), assinada junto com outras três associações, para que os EUA retome o direito das pessoas de requererem asilo no país.
Com dois decretos, o presidente americano eliminou o aplicativo CPB One, que dava a possibilidade de imigrantes pedirem asilo na fronteira enquanto aguardam o processamento por uma corte em território americano, e vetou ainda as outras formas em que eles poderiam pedir a proteção.
A opção de agendar audiências de asilo e passar por uma entrevista para entrar nos EUA foi criada em maio de 2023 por Joe Biden para tentar organizar o fluxo na fronteira. Até então, as pessoas buscavam meios de entrar no país ou se apresentar nos postos de entrada para fazer o pedido.
Convenções internacionais e um estatuto aprovado pelo Congresso determinam que, uma vez estando nos EUA, imigrantes que se sentem em perigo em seus países de origem podem requisitar o asilo e aguardar no país solicitado para ver se os tribunais acatam ou não o pedido. Essa operação é conhecida como kamikaze.
Ainda no governo Biden, muitos cruzavam a fronteira de forma irregular para se entregar aos agentes da fronteira e para pedir asilo. Ou mesmo iam até as portas das cidades fronteiriças para isso. Na teoria, os agentes deveriam dar aos imigrantes essa chance. Na prática, porém, nem todos eram aceitos. Sob Trump, essa situação não é mais permitida, e a orientação a quem trabalha na fronteira é deportar qualquer um que tente entrar irregularmente.
A cantora Bela, 55, deixou Cuba em 2024 para tentar ingressar nos EUA. Ela já tem status de refugiada no México, mas prefere tentar cruzar ao vizinho ao norte. Além de ser imigrante, ela diz que ser uma mulher trans é um fator que a faz enfrentar dificuldade de conseguir emprego no México.
“Eu tive que me prostituir porque nunca me dão trabalho”, conta. Ainda assim, segundo ela, permanecer no México é uma opção melhor do que regressar a Cuba.
Antes de ir a Ciudad Juárez, onde está agora em um abrigo, Bela passou meses na Cidade do México. Ela decidiu subir à fronteira para tentar ingressar legalmente nos EUA já temendo medidas que Trump poderia implementar e que foram promessas de campanha.
“Queria cruzar antes [da posse do republicano] porque sabíamos que depois seria impossível. Como não saiu a consulta [do aplicativo CBP One] a tempo, o que resta é cruzar [ilegalmente]. Eu fui até a ponte em 26 de dezembro e disse: ‘olhe, eu sou cubana’, e pensei que a comunidade sempre teve uma espécie de prioridade. Pensei que seria fácil, mas fui recusada e tive que voltar”, relata.
O procedimento anterior se somava a outras possibilidades para imigrantes pedirem proteção: refúgio, em que as solicitações são feitas e processadas no país de origem e uma vez aprovada, a pessoa viaja aos EUA; e uma proteção temporária, criada por Biden, a imigrantes de países específicos que permite que os beneficiados fiquem por ao menos dois anos nos EUA se tiverem um patrocinador.
Até dia 20 de janeiro, essa proteção temporária era dada a cidadãos de Cuba, Haiti, Nicarágua e Venezuela. Já no dia da posse, Trump mandou encerrá-las. Ainda há o Status Temporário de Proteção, que existe desde 1991 e garante visto humanitário a cidadãos de 16 países, mas o novo presidente também já acabou com essa previsão para haitianos, por exemplo.
“Eu fico aqui porque em algum momento [a fronteira] tem que abrir. Em algum momento tem que abrir e, quando abrir, tenho que estar aqui.”
No processo judicial, as associações afirmam que, mesmo em nível elevado, a imigração não constitui uma invasão do país no sentido dado pela Constituição. “Os réus [governo dos EUA] estão expulsando sumariamente não cidadãos que estão fisicamente presentes nos EUA sem permitir-lhes uma oportunidade de buscar asilo e sem cumprir os procedimentos exigidos para remoção regular”, diz o texto.
A ação reforça que o Congresso aprovou estatuto garantindo que não cidadãos que enfrentem perseguição ou tortura devem ter acesso ao asilo e a outras formas de proteção. Ao negar a possibilidade de pedirem e expulsá-los de uma vez, “nega-se o direito de passarem por um processo, onde teriam a chance de ter audiências completas sobre o mérito de suas reivindicações de proteção”.
O venezuelano Edgar, 21, cumpre os requisitos para pedir proteção. “Eu era funcionário do governo. Quando quis sair legalmente, me disseram que não, que não podia me aposentar”, conta.
Após a eleição na Venezuela, em julho passado, ele diz que pessoas com seu perfil passaram a ser perseguidas e presas. “Eles saíram para buscar cada pessoa que votou contra ele [o ditador Nicolás Maduro].”
Medidas não impedem imigração irregular: coiotes estão felizes, diz professor
O professor Jeremy Slack, do Departamento de Sociologia da Universidade do Texas em El Paso, avalia que os decretos de Trump que impedem a solicitação de asilo serão derrubados pelos tribunais. Segundo ele, há precedentes fortes no sentido de que o presidente não pode impedir que as pessoas busquem proteção nos EUA.
Para ele, mesmo com o aumento de agentes na fronteira do lado mexicano e americano, inclusive com a presença de militares, é difícil controlar todos os pontos sobretudo em espaços mais amplos para isso, como no deserto do Arizona.
Slack diz ainda que o crime organizado está cada vez mais conectado ao cruzamento ilegal da fronteira, o que tem levado ao aumento na recrutamento de crianças e adolescentes para trabalhar como coiotes. Isso porque é mais difícil para as autoridades americanas responsabilizá-los criminalmente. Caso sejam pegos, podem tentar retornar ao país de origem sem maiores penas.
“Falei com coiotes desde a eleição [de Trump], e eles estão muito felizes. Eles acham que agora as pessoas vão ter de pagar para cruzar porque não há outras opções. Antes, você podia marcar uma simples consulta no seu telefone e caminhar até a fronteira, e agora não mais”, conta o especialista.