SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Apesar de ter fatiado a denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outras 33 pessoas pela trama golpista em cinco peças separadas, a PGR (Procuradoria Geral da República) manteve conteúdo idêntico em todas elas, com exceção do parte inicial e final onde são listados os acusados em cada uma.

Com isso, o indicativo é que, aceitas as denúncias, as ações penais devem tramitar de modo separado no STF (Supremo Tribunal Federal).

Segundo especialistas em direito penal consultados pela Folha, caso a tramitação de fato se dê de modo separado, é possível que haja prejuízo para a atuação das defesas dos acusados, dado que as condutas e provas discutidas em uma ação podem ter impactos nas outras.

Também apontam que o ideal seria que os denunciados tivessem um julgamento conjunto, de modo a evitar que haja contradição entre as decisões finais em uma ou outra ação e que um mesmo fato seja eventualmente interpretado e valorado de modos distintos.

Questionada pela reportagem quanto ao motivo da opção pelo fatiamento e se o órgão entende que o julgamento deveria ser conjunto ou separado, a Procuradoria afirmou apenas, por meio de sua assessoria, que “a apresentação das denúncias reflete a estratégia processual adotada pelo PGR como titular da ação penal”.

Também perguntada sobre outros casos em que tenha fatiado denúncias com conteúdos idênticos, o órgão disse que não possui esse tipo de levantamento.

Bolsonaro foi acusado formalmente na semana passada pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, sob acusação de liderar uma tentativa de golpe de Estado. Na mesma denúncia, estão outras sete pessoas, que, segundo a PGR, formavam “o núcleo crucial da organização criminosa”.

Os demais foram acusados na mesma data, como integrantes da mesma organização criminosa, mas com funções distintas, como o núcleo de “operações estratégicas de desinformação”. Apontado como integrante desse último núcleo, o ex-apresentador da Jovem Pan Paulo Figueiredo, que mora nos Estados Unidos, foi denunciado sozinho.

Conforme mostrou a Folha de S.Paulo, ministros do Supremo têm a previsão de julgar o ex-presidente ainda em 2025 e, portanto, antes do ano eleitoral.

Raquel Scalcon, que é professora de direito penal da FGV e advogada, afirma que o fatiamento geralmente acontece quando é preciso adicionar um novo acusado mais tarde ou quando surgem novas informações, mas que é incomum a divisão para denúncias feitas num mesmo momento.

Ela considera que a tramitação separada pode ter impacto na ampla defesa e no contraditório do processo e que pode haver uma dificuldade de delimitar o que cada acusado fez.

“Como é que o que foi dito em um processo vai reverberar no outro? Como é que as defesas vão se defender disso?”, questiona ela. “Como é que vai haver esse diálogo entre os processos? Ou não vai haver? Isso é um problema.”

Davi Tangerino, professor de direito penal da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e advogado criminalista, avalia, por sua vez, que é uma garantia constitucional que uma situação jurídica não se estenda indefinidamente e que uma ação com 34 réus demoraria muito tempo. Nesse contexto, ele não vê problema no fatiamento para um andamento mais célere.

Mesmo com tramitação separada, ele avalia que o ideal seria a realização de um julgamento conjunto. “Se você julga todo mundo junto, você diminui o risco de ter decisões contraditórias”, diz.

Ele também defende que o mais eficiente seria permitir, desde o princípio, que as partes de um processo possam, por exemplo, participar da inquirição de uma testemunha de uma outra ação.

O advogado Vinícius Assumpção, que é doutor em direito pela UnB (Universidade de Brasília) e diretor do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), vê como principal risco da tramitação separada que haja contradição entre as provas e oitivas de testemunhas em cada processo.

Quanto à hipótese de haver uma espécie de participação cruzada das defesas nas diferentes ações ou de um julgamento conjunto, ele não vê como uma possibilidade real, argumentando que isso seria muito difícil de alinhar e que a opção pelo fatiamento aponta para outra direção.

“Inevitavelmente, em um e outro processo, haverá maiores questionamentos da defesa”, diz. “É muito difícil que isso tudo se alinhe.”

Para Gustavo Badaró, professor de direito processual penal da USP (Universidade de São Paulo) e advogado criminalista, o fatiamento gera um grande prejuízo para as defesas dos acusados, que teriam uma visão parcial dos fatos, frente à acusação, que preservaria uma visão global.

Ele compara a situação à Operação Lava Jato e diz que nela já havia denúncias separadas por partidos, empreiteiras, com partes idênticas entre si.

Na avaliação dele, há também um prejuízo do ponto de vista da imparcialidade de quem vai julgar, dando como exemplo hipotético o julgamento de um réu do quinto processo, depois os outros quatro já terem sido julgados.

“Ele [juiz] já formou uma opinião prévia sobre a existência ou não daqueles fatos, mas por conta de outras provas e outras argumentações em relação às quais o réu não teve oportunidade de se manifestar”, diz.