MUNIQUE, ALEMANHA (FOLHAPRESS) – Quando o vice-presidente dos Estados Unidos, J. D. Vance, prestou solidariedade pelo atentado que ocorreu na quinta-feira (13) em Munique, ele disse esperar que os aplausos da plateia não fossem os únicos em seu discurso.

O público da Conferência de Segurança de Munique, formada em boa parte por lideranças da Europa ávidos por uma sinalização de que os EUA continuavam a apoiar a Ucrânia na guerra contra a Rússia, acompanhou em silêncio enquanto Vance ignorava o conflito no Leste Europeu, fazia acenos à extrema direita e criticava políticas de regulação das redes sociais. “A ameaça que me preocupa é a interna”, disse Vance.

O vice de Trump criticou o fato de o Supremo da Romênia ter anulado as eleições no país por suposta interferência russa. Atacou o que chamou de práticas de “censura digital” contra “conteúdos de ódio”, numa referência às iniciativas europeias de regulação das redes, e disse que os valores democráticos precisam ir além do discurso.

“Precisamos fazer mais do que apenas falar sobre valores democráticos, precisamos vivê-los”.

A plateia ouviu em silêncio a maior parte do tempo, num testemunho do incômodo que o conteúdo das falas de Vance causava. Ele disse, por exemplo, que a liberdade de expressão estava em recuo na Europa. Ao destacar a centralidade que esse tema tem para a gestão Trump, sentenciou que “em Washington, há um novo xerife na cidade”, expressão em inglês que, nesse caso, quis transmitir a ideia central do vice: Trump está de volta e a bagunça (ou o que o novo governo chama de bagunça) acabou.

Posteriormente, porém, autoridades se manifestaram. O ministro da Defesa da Alemanha, Boris Pistorius, por exemplo, rejeitou as críticas de Vance. “Esta democracia foi questionada pelo vice-presidente dos EUA -não apenas a democracia alemã, mas a da Europa como um todo”, disse o alemão. “Se eu entendi corretamente, ele compara a situação da Europa com o que prevalece em alguns regimes autoritários. Isso não é aceitável.”

Em um dos trechos mais controversos de seu discurso, Vance acenou à AfD (Alternativa para a Alemanha), um partido de extrema direita .”A democracia se baseia no princípio sagrado de que a voz do povo importa. Não há espaço para firewalls”, afirmou, em referência à política dos demais partidos de não trabalhar com a legenda extremista. “Nenhum eleitor neste continente foi às urnas para abrir as comportas para milhões de imigrantes não documentados.”

Às vésperas das eleições gerais de 23 de fevereiro, a AfD pontua cerca de 20% nas pesquisas, mas tem status de pária entre outros grandes partidos políticos em um país com passado nazista.

Após o discurso de Vance, o vice se encontrou às margens da conferência com a candidata a primeira-ministra da AfD, Alice Weidel. De acordo com um porta-voz da política alemã, a conversa foi “descontraída e amigável”, e os dois discutiram a Guerra da Ucrânia e o firewall dos demais partidos contra a AfD. Durante o encontro, Vance teria expressado mais uma vez sua simpatia ao partido extremista.

Em uma entrevista à rádio Deutschlandfunk, que será transmitida no domingo (16), o primeiro-ministro alemão, Olaf Scholz, criticou os comentários e afirmou que a Alemanha tinha um firewall contra partidos de extrema direita por um bom motivo.

Durante a conferência, o vice americano ainda repetiu a demanda de Trump de que os aliados da Otan aumentem seus gastos com defesa. “Não há segurança se você tem medo das escolhas feitas pelo seu próprio povo”.

Pouco depois do discurso, o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, participou de uma discussão com um grupo de senadores americanos. Defendeu que a Ucrânia e a Europa precisam ser incluídas em qualquer discussão de paz. “Fazer um acordo sem nós e sem a Europa não é uma boa ideia”, disse.

O ucraniano também defendeu que garantias de segurança precisam ser dadas a Kiev, mencionando a adesão à Otan. No entanto, ele reconheceu que essa possibilidade não é apoiada pelos EUA.

Antes de Vance falar no evento, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, defendeu a visão europeia de que qualquer processo de paz precisa respeitar o sacrifício feito pelos ucranianos no campo de batalha.

“O fracasso da Ucrânia enfraqueceria a Europa e os EUA”, disse. Ela também anunciou apoio a uma proposta de relaxar regras de controle fiscal para gastos com defesa, numa tentativa de aumentar as despesas dos membros do bloco com segurança.

O vice-presidente americano também se reuniu com líderes europeus durante o evento em Munique, alguns dos quais reconhecem a necessidade de elevação de gastos de Defesa.

“A nova gestão americana tem uma visão de mundo muito diferente da nossa, uma que não respeita as regras estabelecidas, a parceria e a confiança construída,” disse Frank-Walter Steinmeier, chefe de Estado da Alemanha -cargo em larga medida cerimonial.

O presidente francês, Emmanuel Macron, é outro líder europeu que defende maior autonomia securitária para o continente. Em entrevista ao Financial Times, ele argumentou em favor de um “despertar estratégico” que impulsione a Defesa e reacenda o crescimento econômico da UE.

Em entrevista ao jornal The Wall Street Journal publicada antes de suas declarações em Munique, Vance afirmou que os EUA tinham à disposição ferramentas econômicas e militares para pressionar Moscou a aceitar um acordo para terminara a Guerra da Ucrânia.

A fala com elemento militar foi lida como novidade pelo Kremlin, que pediu explicações.

“Este foi um novo elemento sobre a posição [dos EUA]. Não ouvimos tais formulações antes, elas não foram expressas antes”, disse o porta-voz Dmitri Peskov aos repórteres. “Então, é claro, durante os próprios contatos sobre os quais temos falado, esperamos receber algum esclarecimento adicional.”