SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Embora não seja uma pessoa especialmente religiosa, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, voltou à Casa Branca em 2025 de mãos dadas com cristãos fervorosos que se preparam para refazer o governo da maior economia do mundo à sua imagem e semelhança.
Grupos nacionalistas cristãos agora veem uma oportunidade de defender bandeiras que levem os EUA de volta a uma época em que, por exemplo, o aborto era proibido em quase todo o país e pessoas LGBTQIA+ não tinham espaço na vida pública.
A justificativa para essas medidas é a de que os EUA devem ser um país regido por princípios bíblicos, que por sua vez autorizariam essas medidas restritivas. Mas a ideia de que a Bíblia é inequívoca a respeito desses temas modernos, ou a respeito de qualquer coisa, é incorreta e desonesta, afirma em entrevista à Folha o cientista da religião e estudioso bíblico americano Dan McClellan e o que nacionalistas cristãos fazem é escolher uma interpretação da Bíblia e utilizá-la para excluir minorias.
McClellan, além de ser PhD em teologia e religião pela Universidade de Exeter, também é um famoso tiktoker, com quase 1 milhão de seguidores na rede social onde fala sobre história da Bíblia e desfaz mitos a respeito das escrituras. Para ele, todo cristão precisa negociar com a Bíblia para tirar de lá o que acredita ser mais útil para a identidade que quer construir.
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*Folha – O senhor argumenta em seus vídeos que a interpretação da Bíblia usada por nacionalistas cristãos para autorizar discursos anti-LGBT e anti-imigração é desconectada do texto bíblico. Por quê? Quão distantes das escrituras eles estão?*
*Dan McClellan -* De certa maneira, eles não estão tão distantes do texto. Há passagens na Bíblia que essas pessoas utilizam de maneira correta. O problema é que, para cada versículo que apoia sua ideologia, há muitos outros que a desautorizam. Para utilizar a Bíblia como um todo para justificar a ideologia, eles precisam negociar com o texto, dando prioridade para alguns versículos em detrimento de outros.
Isso significa dizer que eles não querem entender a Bíblia como uma coleção de vozes e se baseiam na ideia de que cada palavra do texto vem de Deus e deve refletir a perspectiva única, inerrante e perfeita Dele sobre tudo. É daí que vem a desconexão: a representação que fazem da mensagem bíblica sempre é negociada, sempre precisa ser mediada por alguma coisa que vem de fora da Bíblia. E essa coisa, como os estudos mostram, são as políticas identitárias das pessoas engajadas com o texto.
A Bíblia não tem significado inerente, ela é um texto. Ela só tem significado quando um leitor o atribui em um determinado contexto. Por isso, ela pode dizer muitas coisas, e quando as pessoas a utilizam para apoiar suas ideologias nacionalistas, misóginas e supremacistas brancas, isso só revela quais são as prioridades dessas pessoas que buscam uma justificativa para suas políticas identitárias. E ninguém está imune a isso, mas muita gente finge que está.
*Folha – A expressão “políticas identitárias” é utilizada pelo senhor em um contexto diferente daquele que é mais comum. Por quê?*
*Dan McClellan -* Muita gente utiliza essa expressão para se referir exclusivamente ao que fazem as minorias. Mas de um ponto de vista acadêmico e da ciência cognitiva da religião, isso nunca fez muito sentido para mim, porque todo mundo faz política identitária. Somos animais sociais, temos um monte de identidades sociais que fazem de nós quem somos. Então utilizo a expressão para significar todo tipo de motivação, objetivos e dogmas ancorados nessas identidades sociais.
*Folha – O senhor parece acreditar que existem negociações mais ou menos válidas da Bíblia. Por que a negociação feita por nacionalistas cristãos para apoiar suas posições é mais problemática do que aquela feita por uma igreja pró-LGBT, por exemplo?*
*Dan McClellan -* Quando você ignora ou finge que não está negociando com o texto, quando você tenta utilizá-lo como a palavra pura e inequívoca de Deus, você comete um erro. Ou seja, o primeiro passo para ter uma negociação válida com o texto é estar ciente e ser transparente a respeito desse processo.
Para além disso, importa quais são seus objetivos retóricos. E se o objetivo é a estruturação de poder contra os interesses de pessoas marginalizadas ou oprimidas, eu acho isso inválido. Se o objetivo é proteger e preservar os interesses e identidades dos marginalizados e oprimidos, é mais válido.
E se nos voltarmos para a Bíblia hebraica, os judeus foram oprimidos ao longo dos séculos pelos impérios babilônico, assírio, persa e romano. Entretanto, a partir do século 4º, o cristianismo se tornou a religião do Império Romano, e desde então vem sendo utilizada da perspectiva do opressor com o objetivo de demonizar o oprimido. Porque se você quer se identificar com o oprimido, você precisa de um opressor. E se você é o opressor, você não pode apontar para mais ninguém a não ser para os oprimidos.
Assim, a demonização de comunidades LGBT, de pessoas trans, de minorias e imigrantes faz parte de uma tentativa de utilizar a linguagem de opressor e oprimido da Bíblia para encontrar um opressor quando na verdade você é o opressor. E isso é desonesto, é danoso, causa sofrimento e morte ao redor do mundo.
*Folha – Mas se todos os grupos precisam interpretar a Bíblia da forma que mais faz sentido para eles, por que ainda existe tanta briga sobre o que o texto diz? Se é óbvio, por exemplo, que a Bíblia autoriza a escravidão, mas nenhum cristão defenderia isso hoje, por que continuar buscando a autorização da Bíblia para questões como aborto ou homossexualidade?*
*Dan McClellan -* Isso tem a ver com política identitária. Há algumas gerações, as pessoas decidiram que a escravidão era errada. Para chegar a um novo acordo moral de que a escravidão era maligna, foi necessário que os cristãos renegociassem sua relação com a Bíblia. E isso já foi feito antes em questões como poligamia. Sempre vai ser necessário negociar com o texto para remover coisas. Muitos grupos cristãos apoiam pessoas LGBT hoje porque conseguiram negociar e remover as leituras homofóbicas da Bíblia. Mas acredito que esses grupos são mais transparentes a respeito desse processo.
Por outro lado, muita gente que utiliza esses versículos homofóbicos nem percebe que já está negociando com o texto ao escolher quais partes da Bíblia querem priorizar e quais partes não querem. Mas elas fazem isso porque [a homofobia] é um marcador identitário que ancora suas identidades sociais. É só questão de tempo para que a maioria dos cristãos decida que chegou a hora de mudar de opinião [a respeito da homossexualidade].
*Folha – Por que o nacionalismo cristão atrai tantos evangélicos brancos nos EUA?*
*Dan McClellan -* À medida que nos tornamos uma sociedade mais plural e secular, à medida que cristãos brancos veem sua influência se erodir [nos EUA], eles se sentem mais ameaçados e acham que estão perdendo terreno, como se fosse um jogo com perdedores e vencedores. Então acho que o nacionalismo cristão se torna atraente porque apela a essas identidades sociais e diz: ‘não, você é quem deveria estar no controle, e vamos traçar um plano para que você volte ao poder’.
Quando a coisa é dita nesses termos, quando vira uma batalha entre o bem e o mal, o fiel e o infiel, Deus e Satanás, você quer estar do lado certo. E as pessoas têm motivações diferentes. Algumas acreditam que isso tudo se encaminha para a segunda vinda de Cristo. Outras só querem mais poder, e outras tem medo de virarem minorias. Não querem ver pessoas brancas no lugar de uma minoria porque, veja você, sabem que minorias são maltratadas.
Ou seja, é uma combinação de fatores que, afinal, têm a ver com política identitária. As pessoas querem acesso ao poder, e muitas pessoas têm medo que mais igualdade signifique opressão contra o seu grupo. Aí elas reagem, sem se importar com quem se machuca no meio do caminho.
*Folha – Um dos cristãos mais visíveis no governo Trump é o vice-presidente J. D. Vance. Em uma entrevista recente, Vance atacou a Conferência de Bispos Católicos dos EUA depois que o órgão disse que a política anti-imigração do governo vai contra a fé católica. Quem tem razão nessa disputa? O que a Bíblia diz sobre imigração e estrangeiros?*
*Dan McClellan -* Acredito que as duas partes podem encontrar versículos na Bíblia para defender suas posições. Há etnocentrismo na Bíblia. Quando Neemias retorna do exílio, ele vê as muralhas de Jerusalém destruídas. Elas representam um símbolo da identidade judaica de novo, um grupo oprimido, e Neemias quer reconstruí-las. Dessa forma, algumas pessoas dizem que a Bíblia apoia a construção de muros.
Mas se trata de uma tentativa de proteger um grupo étnico ameaçado. Se quiséssemos transferir a metáfora para os dias de hoje, a melhor comparação seria pessoas negras, ou LGBT, ou migrantes em situação irregular. Essas são as pessoas com as muralhas destruídas que estão em uma posição onde sua identidade pode ser arrasada.
Por outro lado, há muitas referência ao imigrante na Bíblia, com pedidos para que ele seja tratado da mesma forma que o nativo. Mas também há leis dizendo que o nativo deve ser tratado melhor que o imigrante. É uma mistura de conceitos. Mas quando você tenta extrair um princípio consistente da Bíblia, de novo, você precisa negociar com o texto e decidir o que você quer que ele diga.
Isso posto, quando você analisa os ideais mais repetidos na Bíblia, o que parece ter sido as principais preocupações dos profetas e de Jesus, acredito que uma posição pró-imigração é a que mais está alinhada à mensagem bíblica, ainda que haja exceções.
*Raio-X | Dan McClellan, 44*
Nascido em 1980 na Virgínia Ocidental, nos EUA, é estudioso da Bíblia e cientista da religião formado em estudos do Oriente Médio antigo pela Universidade Brigham Young, com mestrados em estudos judaicos pela Universidade de Oxford e estudos bíblicos pela Trinity Western University e PhD em teologia e religião pela Universidade de Exeter. É conhecido tiktoker, com mais de 900 mil seguidores; seus vídeos frequentemente atingem dezenas de milhares de visualizações.