Medida como a proposta por Trump nos EUA, ainda que bloqueada na Justiça, limita nacionalidade à ascendência
ANGELA BOLDRINI E JOSÉ HENRIQUE MARIANTE
SÃO PAULO, SP E BERLIM, ALEMANHA (FOLHAPRESS) – Aos 7 anos, Sara Alhashimi era uma menina gentil, com muitos amigos na escola em que estudava em Uddevalla, no oeste da Suécia. Filha de iraquianos nascida na Bélgica, ela morava na cidade com familiares desde 2020 e era uma aluna dedicada e querida.
Um dia, a vida de Sara foi virada de cabeça para baixo: ela, seus irmãos e seus pais seriam deportados para o Iraque, um país onde ela nunca tinha estado. Isso porque, de acordo com a legislação belga, a menina não era uma cidadã europeia, mas uma imigrante -e seu pedido de asilo havia sido negado.
O direito à cidadania por nascimento, ou seja, de que qualquer criança nascida no território do país recebe sua nacionalidade imediatamente, é restrito na Europa. Na Bélgica, por exemplo, só estrangeiros que morem legalmente no país há pelo menos dez anos podem registrar seus filhos como cidadãos.
Nos EUA, o presidente Donald Trump assinou um decreto para acabar com o direito de que toda criança nascida em território americano tem de ser considerada cidadã daquele país. A medida foi bloqueada duas vezes na Justiça, mas o debate ainda não foi encerrado.
Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, a restrição de cidadania por nascimento aumenta a vulnerabilidade de um grupo já exposto, o das famílias migrantes.
Com apenas dois dias de aviso, Sara teve de deixar a escola na Suécia. A família decidiu tentar a perigosa travessia do Canal da Mancha, cruzando as águas geladas entre a França e a Inglaterra em botes infláveis frágeis e superlotados.
A menina morreu no fim de abril, pisoteada no fundo de uma dessas embarcações, enquanto os gritos do pai dela pedindo por ajuda podiam ser ouvidos por quem estava na areia na praia de Wimereux, na costa francesa. Ela é uma das 14 crianças que perderam a vida tentando fazer a travessia em 2024.
O pai, Ahmed, afirmou à BBC que sentia que o mar era sua única opção. “Eu estou na Europa há 14 anos e fui rejeitado. Se eu soubesse que teria 1% de chance de manter meus filhos na Bélgica, na França ou na Suécia, eu os manteria lá”, disse.
“Muitas famílias passam longos períodos na Alemanha, na Suécia, na Bélgica e em outros países europeus, esperando num limbo as respostas sobre seus pedidos de asilo”, afirma Lily MacTaggart, coordenadora da ONG Project Play, que atende crianças migrantes em Calais, no norte da França.
“Quando elas são rejeitadas, essas famílias, incluindo crianças nascidas na Europa, tentam cruzar para o Reino Unido como último recurso. Como o governo se recusa a abrir rotas seguras, a travessia é extremamente perigosa.”
Saskia Bonjour, professora de ciência política da Universidade de Amsterdã, afirma que a noção europeia de cidadania varia de país para país, mas é muito baseada na noção de permanência e apreensão dos valores locais. “Há uma ideia de que o nascimento pode ser acidental, mas viver no país é importante”, explica. O problema é que os prazos podem ser altos, como por exemplo na Holanda, onde a cidadania só pode ser requisitada após os 18 anos.
Na França, o chamado “jus solis” só vale a partir da segunda geração. Um filho de imigrantes só será considerado francês se seus pais também tiverem nascido no país.
No Brasil, como ocorre em muitos países americanos, formados a partir de colonização e levas de imigração, a lei determina que todas as crianças nascidas em território nacional são brasileiras por direito. Além disso, filhos de pais brasileiros nascidos no exterior também podem pedir a nacionalidade.
Em setembro do ano passado, a Folha de S.Paulo revelou que uma menina brasileira vivia sem familiares em um abrigo no Panamá. Liliane, 2, é filha de angolanos e nascida em São Paulo. Ficou órfã quando sua mãe morreu na travessia da selva de Darién, com o objetivo de chegar aos Estados Unidos, e passou mais de um ano em custódia panamenha.
Como o Brasil confere direito de solo irrestrito, a família recebeu ajuda do Itamaraty para repatriar a menina, que hoje vive novamente no Brasil.
O professor de direito internacional Luís Renato Vedovato, da Unicamp e PUC-Campinas, afirma que a nacionalidade confere proteção do Estado e que esse vínculo é mais importante para aqueles em situação vulnerável, como emigrados e pessoas mais pobres. “Quem tem recursos não depende tanto desses vínculos, que servem para proteger e garantir que as pessoas sejam recebidas como detentoras de direitos.”
Ainda não está claro qual será o desfecho das medidas de Trump para restringir o direito à cidadania americana. Bonjour aponta que, apesar do “jus solis”, os EUA têm histórico de restrição de cidadania para grupos considerados indesejáveis.
Indígenas, por exemplo, só passaram a ser considerados cidadãos em 1924, 56 anos depois da inclusão do direito de cidadania por nascimento na Constituição dos EUA. “Há também uma raiz histórica em tudo isso. Trump não precisou ir para o exterior em busca de inspiração”, declara a professora.