SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “A gente tinha um barquinho com uma corda que ele puxava e levava a gente por toda a piscina. Até que ele ia com a corda pro fundo só pra gente cair. E a gente ria, voltava pro barco e ele dava uma carona de novo. Ele se divertia demais!”, conta a treinadora de animais Renata Fernandez. Ela lembra saudosa do tempo que conviveu com a baleia orca Keiko no parque aquático Reino Aventura, no México.
“Nada que Renata disse na última frase pode ser checado. Nenhuma palavra”, diz logo em seguida o narrador, Daniel Alarcón, na abertura do primeiro episódio de “The Good Whale” (“A Boa Baleia”, em tradução livre).
O contraponto, que poderia soar insensível, é antes uma forma elegante dele tomar uma posição nessa história. Há uma dissonância entre como percebemos nossa relação com os animais e o que eles de fato sentem.
Isso não torna menos verdadeiro o afeto que Fernanda e tantos outros sentiram por Keiko, mas para contar como tratadores, veterinários e ativistas tentaram levá-la de volta aos mares onde nasceu, Alarcon assume esse ceticismo.
Gostamos de supor que sabemos o que é melhor para os animais que submetemos a nossos cuidados. Mas sabemos de fato? Até onde devemos ir? Essas difíceis perguntas pairam por toda a série.
Keiko é o “verdadeiro nome” dado à boa baleia que estrelou o hit “Free Willy”, de 1993. No filme, um jovem se afeiçoa a Willy e termina por libertá-la dos donos gananciosos do aquário onde ela vivia cativa.
Já o podcast conta a história real do que se passou com a orca após o filme, quando não bastaria a força da amizade entre ela e um menino-problema para levá-la de volta ao mar. Afinal, Keiko mesmo não era livre. Quando o público do filme descobriu, pegou mal.
Um imenso projeto de reabilitação da baleia às águas do Atlântico Norte se inicia. Uma iniciativa cara e extravagante, como alguns membros da própria equipe achavam. Mas também carregado de simbolismo. Era a chance de ativistas e donos do dinheiro da indústria cultural realizarem a fantasia do filme.
A série parte do Reino Aventura, parque temático no México onde Keiko vivia após “Free Willy”. Dali, segue para um moderno aquário no estado do Oregon, Estados Unidos, feito para prepará-la fisicamente para o mar. A etapa final é num amplo cercado aquático na costa da Noruega, onde ela começa a se deparar com grupos de orcas selvagens.
Mais do que o melodrama de “Free Willy”, a grande trajetória reconstruída no podcast evoca um “Moby Dick” às avessas. Em vez de uma perseguição movida pelo desejo de vingança, pela rivalidade e obsessão odiosa de um homem que guia os demais num caminho para a destruição, no podcast humanos e baleia se entremeiam por motivos opostos.
“Todos amavam Keiko e projetavam o que achavam que seria o melhor para ele”, diz Alarcón em entrevista à reportagem. “Eu achei que seria difícil ouvir alguma emoção de biólogos marinhos e tratadores sobre uma história que tem mais de 20 anos. Mas a conexão das pessoas com Keiko era tal, que isso não foi um problema.”
Essa mesma conexão é o que tornou cada rompimento de vínculo com Keiko mais difícil. Desde sua espetacular partida do Reino Aventura até ignorar seus aparentes apelos pela companhia de um barco no Atlântico norueguês. “Sinto que ele acabou aprisionado pela fama e pelas expectativas lançadas nele por conta dessa mesma fama”, reflete Alarcón.
Mesmo distante e já bem conhecida do grande público, a força da história justificava o empreendimento, diz Alarcón, veterano do ramo. Romancista e jornalista, ele também é apresentador do podcast Radio Ambulante e diretor editorial de El Hilo, consagrados podcasts jornalísticos em espanhol.
“The Good Whale” é um trabalho proposto a ele pela produtora Serial do podcast de mesmo nome, hoje do New York Times. Foram dois anos debruçados sobre a história de Keiko para a criação dos seis episódios da série.
Um sonho para qualquer pessoa do ramo. Isso resulta num produto rico em apuração, que permite sustento a um texto preciso e sempre atraente. “Foi como escrever um romance para áudio com um monte de pessoas te ajudando”, diz Alarcón.
Como ressalta o também excelente podcast “Sound School” em análise, “The Good Whale” é econômica nos trechos de entrevistas. É sobretudo na voz de Alarcón que a história se desenrola. É um podcast que confia no texto e performance de seu narrador, que por sua vez confia que a palavra falada pode muitas vezes ser suficiente para a mídia sonora.
É o tipo de história que poderia ser sufocada por efeitos sonoros de paisagem marítima e baleias clicando, mas não é o caso. Quando surgem, esses elementos são tão bem costurados à narrativa que dão força ao que é contado. Tudo isso associado a uma delicada trilha sonora, que lembra o ato de boiar no mar, algo que pode ser relaxante, mas com um fundo de tensão. Há ainda espaço para experimentação, como no surpreendente e divertido quinto episódio que promove um encontro entre musical e podcast.
“The Good Whale” é a soma de muitas virtudes bem estruturadas: roteiro, apuração, narração, sonorização. Há muitos momentos em que isso se nota, mas destaco um no quarto episódio que me soa um bom convite a sua audição.
Numa etapa avançada da reabilitação, Keiko se vê ainda num cercado, mas diante de um grupo de orcas. Alarcón comenta do sofisticado sistema de comunicação das baleias, que chega ao ponto de cada grupo desenvolver um conjunto próprio de sons, que ouvimos nesse momento.
Alarcón então especula como deve ser para Keiko estar diante de algo que talvez reconheça, mas sabendo-se de fora. A projeção humana sobre os animais é inescapável, mas, mesmo assim, é através dela que outras espécies conseguem dizer algo para nós.