SÃO PAULO, SP, E RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Em meio a uma disputa judicial envolvendo térmicas no Amazonas, dois dos principais empresários do mercado brasileiro de gás natural, Joesley Batista e Carlos Suarez, tiveram um encontro para tentar aparar arestas. A conversa não durou cinco minutos, segundo relatos de pessoas próximas, e só serviu para acirrar os ânimos.

Suarez escalou a briga na Justiça e quer ser ouvido sobre a mudança de contratos das térmicas que a Eletrobras vendeu à Âmbar Energia dos irmãos Batista. Esses, por sua vez, passaram a acusar o concorrente, em comunicados à imprensa, de “tentar criar dificuldades para obter vantagens”.

O embate entre os dois tem como pano de fundo uma corrida do setor privado para aproveitar o que pode se a última janela de investimentos em gás natural em um cenário de transição energética e de redução da participação do Estado.

A Petrobras ainda é forte no setor, mas a sua saída em alguns segmentos abriu espaço para outros competidores. Essa guerra é travada não apenas no mundo dos negócios mas especialmente nos bastidores da política, no Congresso e nos governos federal e estaduais.

O lobby em si nem chega a ser o problema. É do jogo, e várias entidades defendem interesses setoriais legítimos. O problema é que avança no setor de energia de forma geral o lobby pontual, que beneficia interesses individuais em detrimento do ganho coletivo, o que que leva inúmeros especialistas a temer pela qualidade e sustentabilidade do planejamento energético de longo prazo.

“Nos últimos anos, tivemos o Gás para Crescer, no governo Michel Temer, o Novo Mercado de Gás, com Bolsonaro, e agora o Gás para Empregar, do Lula, mas o preço do gás não cede, e o preço da energia elétrica não para de subir porque temos o lobby do cada um por si”, diz Lucien Belmonte, presidente da Abividro (Associação Brasileira das Indústrias de Vidro).

Além de Suarez e dos irmãos Batista, esse mercado é disputado por outros pesos pesados do capital privado brasileiro: Rubens Ometto, dono do conglomerado Cosan, André Esteves, do banco BTG, e a família Botelho, forte em distribuição de energia elétrica com Energisa, que estendeu os negócios para o gás.

A musculatura é essencial para enfrentar embates regulatórios de monta, que não são poucos. O grupo de Ometto é um exemplo disso.

Investiu quase R$ 500 milhões num gasoduto na subida da serra, em São Paulo, ligando um terminal de importação de gás na Baixada Santista, que construiu, à região metropolitana, onde tem também a Comgás, maior distribuidora da país. O projeto é estratégico, porque ter o próprio gás é um trunfo.

A ANP (Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis), no entanto, avaliou que o projeto feria a desverticalização prevista na Lei do Gás e ameaçou exigir a sua venda. Enquanto o grupo argumenta que é duto de distribuição para uso da companhia, a agência afirma que se trata de gasoduto de transporte para longa distância e, por isso, não pode ser um ativo exclusivo.

O governo de São Paulo entrou no embate a favor de Ometto. Hoje o tema é alvo de conciliação no STF (Supremo Tribunal Federal) e há quem avalie que um meio-termo pode vingar. O grupo ficaria com o duto, abrindo espaço para a passagem de um percentual de gás de terceiros.

Ometto foi o maior doador de recursos para campanhas políticas nas últimas quatro eleições. Em 2022, por exemplo, investiu R$ 7,4 milhões, com grande apoio ao PSD do ministro Silveira. Mas perdeu influência no governo Lula por ter apoiado aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Procurada, a Cosan diz que as doações de Ometto seguem a legislação vigente e reforça que o duto entre o litoral e a capital foi autorizado como gasoduto de distribuição pelo regulador paulista em 2019.

O setor observa com especial atenção a Eneva. Criada a partir da fusão de negócios do empresário Eike Batista, ela é uma das maiores produtoras de gás e energia termelétrica do país, e foi fortalecida pela ampliação da presença do BTG, de Esteves. A percepção é que, se o banqueiro aposta na empresa, ela vai crescer.

No início do ano, a Eneva teve um revés. Foi anunciado um leilão de potência, para contratar, entre outros produtos, térmicas a gás, onde a companhia é forte. As regras, porém, impediam a participação da Eneva. As suas ações chegaram a sofrer um tombo de quase 10% no primeiro pregão do ano por causa dessa exclusão. Na volta do final de semana, porém, saíram regras novas, viabilizando a sua participação.

O BTG informou à reportagem que a Eneva procurou o MME e soube explicar a desvantagem da proposta original, que privilegiava a construção de novas térmicas, mais caras, e deixava de fora seus ativos —que, por serem amortizados, poderiam oferecer preços melhores.

À reportagem o ministério afirmou que a retificação ocorreu porque a pasta “entendeu ser oportuno ampliar a possibilidade de participação de fontes no leilão, aumentando sua competitividade, em prol da redução de custos aos consumidores”.

O governo ainda não definiu o montante de energia do leilão de potência, e o valor ainda pode deflagrar novos questionamentos e embates.

No Congresso Nacional, o jogo regulatório é ainda mais pesado. Não existe uma bancada do gás, mas quem circula por lá identifica que os parlamentares do Norte e do Nordeste estão entre os mais sensíveis ao tema, em parte porque há reservas e um bom conjunto de térmicas nessa parte do país.

O gás está por trás de alguns dos mais questionados jabutis inseridos em projetos de lei nos últimos anos. O mais famoso apareceu na Lei da Eletrobras, determinando a construção de 8 GW (gigawatts) de térmicas em locais sem gasodutos –o que obrigaria a sua construção.

O primeiro leilão mostrou que a maioria das usinas não tinha viabilidade econômica, mas o tema ressurgiu no projeto que tratava das eólicas offshore, em meio a uma série de medidas estranhas à matéria —incluindo até benefício ao carvão.

“Como fênix, o jabuti do gás ressurgiu das cinzas, não apenas para onerar os consumidores e o custo Brasil, mas para desorganizar ainda mais o setor de energia”, diz Luiz Eduardo Barata, presidente da Frente Nacional de Consumidores de Energia, uma das entidades mais combativas contra subsídios.

Todos os jabutis foram vetados no início deste ano por Lula, sob justificativa de que teriam impacto nas tarifas de energia, mas a presença deles representou mais uma vitória de lobbies no Congresso, que favoreceriam especialmente a Termogás, do empresário Carlos Suarez.

A empresa tem participação em distribuidoras de gás natural nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, algumas ainda inoperantes por falta de insumo. Tem também um braço pré-operacional com autorização para 8.600 quilômetros de gasodutos.

Conhecido como “rei do gás”, um título de que ele não gosta, Suarez é considerado um dos empresários mais influentes no Congresso, pela longa convivência com parlamentares, especialmente do centrão.

Seus principais antagonistas hoje, os irmãos Batista, são vistos como mais próximos do Palácio do Planalto, principalmente após algumas iniciativas que, na leitura do mercado, beneficiaram o grupo. A que provocou mais barulho foi a MP nº 1.232, que ajuda a viabilizar a recuperação da Amazonas Energia, distribuidora daquele estado. À beira de quebrar, precisa ser transferida para um novo investidor.

Um dos itens do texto transferiu para todos os consumidores do Brasil a conta das térmicas que vendem energia para essa distribuidora, que haviam sido compradas, dias antes, pela Âmbar, braço do setor elétrico da J&F. Detalhe: a mesma J&F é a interessada em assumir a distribuidora.

Quase uma dezena de empresas avaliou a compra. Inúmeros executivos do setor afirmam que houve espanto geral quando a MP alterou o tipo de contrato das térmicas. Com isso, um ativo complicado foi automaticamente valorizado. A partir daí, Suarez e Batista entram em rota de colisão pública. A Cigás (distribuidora de gás em que Suarez é sócio no Amazonas) afirma ter débitos que precisam ser esclarecidos antes que os negócios troquem de mãos.

“Nada disso estaria acontecendo se o governo não tivesse mudado a regra no meio do jogo”, afirma Roberto Podval, advogado que acompanha as causas judiciais de Suarez. “Aqui, o Estado se envolveu, e a briga não é privada. O governo que trate o caso com a devida importância e seriedade e consiga uma solução”.

A J&F, em nota, negou o favorecimento. Diz que todas as alterações da MP eram de conhecimento dos concorrentes no leilão das térmicas e rebate a Cigás.

“O pedido da Cigás para interferir na transação e adquirir um direito de anuência sobre o negócio é apenas uma tentativa de Carlos Suarez de criar dificuldades para obter vantagens após perder o processo competitivo privado e acirrado pelas usinas da Eletrobras. A Âmbar não cederá às seguidas pressões de Carlos Suarez para extrair benefícios de um negócio que não lhe diz respeito”, afirmou em nota.

A pasta reforça a crítica. “O Ministério de Minas e Energia refuta veementemente ilações sobre favorecimento a qualquer empresa que atua no setor, e entende que a desinformação propagada é consequência de uma guerra comercial”, destacou em nota enviada a reportagem.

Disse ainda que o MME “não interfere em questões judiciais entre empresas”.

Segundo o ministério, a MP trouxe um equacionamento para a grave situação econômico-financeira da distribuidora amazonense, elaborado por um grupo de trabalho. Suas recomendações, listadas em relatório, ficaram meses disponíveis na internet.

A desconfiança do setor, porém, não para aí. Outras medidas incomodaram, como o protagonismo dado pelo governo à Fluxus, empresa de petróleo dos irmãos Batista. Em julho do ano passado, em visita de Lula à Bolívia para tratar, dentre outros temas, de investimentos da Petrobras e da compra de gás mais barato para empresas brasileiras, o presidente da Fluxus anunciou a compra de campos de gás no país vizinho e foi um dos únicos a falar, entre os cerca de 300 representantes do setor empresarial que integravam a comitiva.

Os relatos são que a reunião para tratar especificamente da oferta do insumo mais barato, porém, foi esvaziada. O porta-voz da YPFB (Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos) não deu garantias, disse que retornaria com informações mais detalhadas, mas até hoje a negociação não rendeu nada às indústrias brasileiras.

Com relação à visita na Bolívia, o MME afirma que a Fluxus não esteve presente nas reuniões que a pasta coordenou, que ficaram a cargo da Apex. Em nota a Apex informou à reportgugque já fez 12 encontros empresariais associados a visitas oficiais do presidente. “A definição sobre quem vai falar é sempre feita após ouvirmos as organizações dos setores econômicos presentes, o que ocorreu no caso mencionado”, disse em nota.

Para especialistas, tantas disputas nos bastidores minam a capacidade do governo de planejar e regular o setor.

“Esse conflito entre agentes econômicos de maneira tão brutal e direta ocorre pela ausência de planejamento energético e pela perda de credibilidade da capacidade do Estado para mediar esses conflitos”, diz o presidente do Instituto Pensar Energia, Marcos Cintra.

“Do modo em que está sendo feito hoje, com todo mundo pensando individualmente, o sistema pode colapsar.”