SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em “Kasa Branca”, Dé, Adrianim e Martins batem perna por Chatuba e exploram o bairro da periferia carioca. Os três andam na roda gigante do parque que costumam invadir, encaram a trilha exaustiva até o Bico da Pedra e dançam noite a fundo ouvindo os raps de L7nnon.

A rotina carregada reserva diversos prazeres, mas também determina uma parceira improvável: a vó de Dé, única parente presente em sua vida, que enfrenta os últimos estágios do mal de Alzheimer.

Trancafiada em sua cadeira de rodas, ela é levada por todo canto junto aos meninos, companhia dos agitos e emoções que está prestes a perder de vez. Ao mesmo tempo, funciona como lembrete constante para os meninos que fielmente a protegem. Dona Almerinda evidencia os limites da vida.

Sob o olhar de Luciano Vidigal, essa constatação não é problema. Muito menos decreta um caminho sem retorno. A direção elege os medos, as inseguranças e os conflitos do trio jovem não como obstáculos a serem superados, mas ferramentas para naturalizar um microcosmo inferiorizado em nossa história.

Da desilusão de um artista que pinta sua musa ao florescer da sexualidade entre amigos, o filme desfaz pressupostos que tornariam as personagens vítimas de um sistema. É diferente de romantizar vivências atravessadas pela ausência paterna, a precariedade do sistema de saúde ou a violência policial, para citar alguns dos temas elencados pela produção.

Mas isso não define a trajetória dessas figuras que passeiam entre a juventude e a velhice. A festa barulhenta que reúne quarteirões por horas a fio não aparece para resolver questões internas, senão para celebrar os membros da comunidade e propor um deslocamento onde tudo se torna possível.

Despreocupado com a progressão clássica do quarteto central, é como se o filme investisse em passagens que flexibilizam minutos para priorizar a duração de experiências.

Se Dé divide os dias com a representante de outra época, viajante simbólico entre linhas temporais, nada mais justo que esteja imune ao medo de outras representações da morte determinadas pelo cinema.

Exemplo disso é a forma como os garotos navegam por fotografias guardadas por Dona Almerinda. Eles se juntam ao redor de um livro de memórias e criam teorias sobre casos de amor e segredos deixados pela senhora. São paralelos que traçam com seus próprios caminhos, fabulando sobre o futuro ao observar o passado.

A forma como Vidigal filma o ir e vir dos trens também reforça o encontro entre tempos distintos. Surge um mosaico que unifica os ali presentes, mesmo sem conhecer seus destinos ou pontos de partida.

Desde o primeiro plano –que resgata o filme dos irmãos Lumière e um período em que o movimento das imagens parecia assustador–, o diretor suspende o passar dos segundos e inscreve uma paciência incomum à geração de Dé e seus amigos.

Saído de um atendimento frustrado no hospital, Dé caminha com sua avó pela ponte que atravessa um viaduto. Os carros seguem, em alta velocidade, e abandonam a tela em segundos. A ansiedade do garoto dá lugar ao sonho de padaria que leva consigo. Os problemas de um mundo inteiro paralisam enquanto os remanescentes de uma família dividem o doce.

São opostos que desafiam uma historiografia de demonizações da periferia e da velhice e sobrepõem a humanidade das personagens a discursos sociais generalizados. ‘Kasa Branca’ sabe estar diante de uma bomba relógio, mas não teme a sua hora de explodir.

Kasa Branca

Quando: Em cartaz nos cinemas

Classificação: 16 anos

Elenco: Big Jaum, Ramon Francisco e Teca Pereira

Produção: Brasil, 2024

Direção: Luciano Vidigal

Avaliação: *Muito bom*