WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – Em discurso recentes, como o de sua cerimônia de posse e em sua participação no Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça), o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, referiu-se à sua eleição como “uma revolução do senso comum”.
É algo de que ele costuma se gabar. Apresenta-se como uma espécie de defensor dos americanos de verdade contra as elites intelectuais, afirma a historiadora Sophia Rosenfeld. Ela leciona na Universidade da Pensilvânia e estuda justamente a história do senso comum. É autora do livro “Democracia e Verdade”, lançado no Brasil em 2023 pela Ateliê de Humanidades, e publica nas próximas semanas uma obra sobre a liberdade no mundo moderno.
O senso comum, explica, refere-se àquelas coisas que nós conhecemos sem ter de estudá-las. É nessa mistura de instinto e experiência que Trump baseia grande parte de suas ideias. Se há petróleo debaixo da terra, por que não explorá-lo? Por que não reduzir os gastos públicos em tempos de crise?
Não importa, nesse contexto, a opinião de especialistas. “Trump tem soluções bastante fáceis para as coisas, e muitas das suas propostas podem ser reduzidas a preceitos simples”, afirma. “Todas as nuances que são necessárias desaparecem.”
A fala sobre a revolução do senso comum foi direcionada a líderes mundiais e empresários reunidos na Suíça. “É uma estratégia”, sugere Rosenfeld. “Permite que ele soe como se estivesse com o povo. Mesmo que eu não acredite que ele pense em si mesmo como um homem comum.”
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*Folha – O presidente Donald Trump defende políticas citando o senso comum…*
*Sophia Rosenfeld -* Quando as pessoas dizem que estão do lado do senso comum, estão tentando ganhar pontos políticos. Mas isso não significa que falam em nome do senso comum ou das pessoas de verdade. É um tipo de reivindicação retórica que é feita tanto pelos políticos de direita quanto pelos de esquerda.
*Folha – A direita e a esquerda usam o senso comum da mesma maneira?*
*Sophia Rosenfeld -* Estamos vendo o ressurgimento do populismo de direita. Os Estados Unidos são o exemplo mais recente, mas há políticos na Europa dizendo também que vão contra os outros políticos, contra as regulações e contra os demais obstáculos à vontade do povo. Essa abordagem contra especialistas e contra modos rebuscados de falar é um elemento comum da política de direita.
*Folha – Existe portanto um conflito a respeito de quem define o que é a verdade os especialistas ou o povo?*
*Sophia Rosenfeld -* O senso comum é uma reação à opinião dos especialistas, que é descrita como equivocada e como um ataque ao conhecimento das pessoas comuns. Um cientista do clima pode falar hoje que o planeta está aquecendo, mas um agricultor vem e diz: “Tem mais neve na minha plantação hoje”. O senso comum é sobre o local, sobre o que você vê na sua frente, sobre as coisas com as quais os seus amigos concordam.
*Folha – A sra. mencionou a mudança climática. Pode dar outros exemplos?*
*Sophia Rosenfeld -* Donald Trump enquadra muitas de suas ideias no senso comum. Diz que os EUA têm muito petróleo debaixo da terra, então por que não o exploraríamos? Diz que o governo está repleto de desperdícios e que, em uma situação normal, as pessoas tentariam reduzir os seus gastos mesmo que os economistas digam que precisamos aumentar o gasto público em tempos de recessão.
Trump tem soluções bastante fáceis para as coisas, e muitas das suas propostas podem ser reduzidas a preceitos simples. Todas as nuances que são necessárias desaparecem.
*Folha – Políticos que falam em nome do senso comum, como Trump, acreditam nessas ideias ou as usam como ferramentas retóricas?*
*Sophia Rosenfeld -* Trump é autenticamente hostil à expertise. Ele não é um leitor ou um pensador, de modo nenhum. Mas é, em sua maior parte, uma estratégia. Permite que ele soe como se estivesse “com o povo”. Mesmo que eu não acredite que ele pense em si mesmo como um homem comum do povo.
*Folha – As pessoas nos EUA, assim como no Brasil, parecem cada vez mais desconfiadas das instituições. O que explica isso?*
*Sophia Rosenfeld -* Sempre houve versões desse fenômeno em todos os lugares. Pense nos políticos de regimes autoritários na América Latina. Mas é algo particularmente prevalente hoje devido a uma série de razões. Existem problemas que os políticos não parecem capazes de resolver, como as disparidades de renda e a questão dos refugiados. Também tem a ver com as transformações nos ambientes de informação, como o surgimento das redes sociais, que permitem que ideias de fora das elites intelectuais circulem com novo alcance. Há uma nova classe de políticos que encontrou um modo de capitalizar isso, dizendo, por exemplo, que consegue canalizar o senso comum na política.
*Folha – Há algum elemento religioso dentro dessa visão de mundo?*
*Sophia Rosenfeld -* O senso comum é às vezes acompanhado de uma perspectiva religiosa que diz que a melhor maneira de saber as coisas é por meio da fé ou do nosso instinto em vez de prová-las a partir de fórmulas matemáticas.
*Folha – Essa desconfiança alimenta as fake news?*
*Sophia Rosenfeld -* Certamente. É a perspectiva de que não podemos confiar em ninguém, de que toda informação é igualmente boa, incluindo aquilo que vemos nas redes sociais.
*Folha – A sra. também estuda a história da verdade e da democracia. Qual é a relação entre essas duas coisas?*
*Sophia Rosenfeld -* Sempre houve duas maneiras de conhecer as coisas: por expertise e por experiência. A política pode ir nessas duas direções. Especialistas podem dizer que não importa o que o povo pense, e os populistas podem dizer que não precisam dos especialistas. Essas duas coisas são perigosas na política. O ideal seria algum tipo de aproximação elites com algum tipo de conhecimento combinadas ao conhecimento comum do povo.
*Folha – Como a sociedade pode garantir esse equilíbrio?*
*Sophia Rosenfeld -* Neste momento, vai ser bastante difícil conciliá-las. Não existe um consenso sobre como colocar essas duas coisas juntas. Vamos ver um vaivém entre diferentes tipos de política, e nenhum dos dois parece prestes a vencer. Hoje, algumas das maiores democracias exploram um populismo do senso comum combinado com autoritarismo.
*Raio-x | Sophia Rosenfeld, 58*
Historiadora americana especializada na história intelectual europeia. Formada em Princeton e Harvard, leciona hoje na Universidade da Pensilvânia. Seu livro “Democracia e Verdade” saiu no Brasil em 2023. É autora também de “Common Sense: A Political History” (senso comum: uma história política). Ela publica agora a obra “The Age of Choice” (a era da escolha), sobre a democracia e a verdade.