BELÉM, PA (FOLHAPRESS) – A certificação de uma área de 122,4 mil hectares de floresta amazônica no Amazonas -quase do tamanho da cidade de São Paulo- foi feita por uma empresa que tem conexão direta com o empreendimento beneficiado com o ato da certificação, o que pode indicar um conflito de interesses.

A empresa que certificou e a empresa responsável pelo gerenciamento da floresta certificada têm um mesmo dono.

Diante da identificação de risco à imparcialidade exigida nesse tipo de negócio, com um mesmo grupo em atuação nos dois lados do balcão, a entidade responsável por monitorar a atuação das certificadoras passou a investigar o caso.

Grupos privados, detentores de vastas áreas de floresta buscam selos de certificação que atestem a preservação das áreas. O selo internacional mais conhecido para indicar a correção de um manejo florestal é o do FSC (Forest Stewardship Council). O atestado de boas práticas pode valer para o manejo de madeira ou apenas para indicar a conservação da área.

O FSC tem certificadores credenciados, a quem cabe fazer auditorias para a validação e emissão dos certificados. Uma das empresas que atuam nesse mercado é a Neocert, sediada em Piracicaba (SP).

Em pelo menos dois casos, a Neocert deu aval a manejo florestal, com fins de conservação, em dois imóveis rurais onde atua a BRCarbon, especializada no desenvolvimento de projetos de créditos de carbono. Neocert e BRCarbon têm um mesmo sócio: a TMNH Participações, com sede em Belém. Os diretores da TMNH são Renato e Ricardo Batista Tamanho.

Primeiro, a Neocert certificou para o selo FSC uma fazenda com 39,6 mil hectares, em novembro de 2023. Depois, em maio de 2024, houve certificação a um segundo empreendimento, com 82,8 mil hectares.

Conforme os relatórios de auditoria, o gerenciamento é operado por uma empresa “contratada externamente, focada exclusivamente em projetos de créditos de carbono e iniciativas de conservação da biodiversidade na área da fazenda”.

Mais à frente, os relatórios deixam claro que é a BRCarbon que cuida da responsabilidade de gerenciamento de florestas, o que inclui prestação de contas.

A empresa atua com créditos de carbono, que são gerados no mercado voluntário a partir de desmatamento evitado de floresta. Se não há o desmate, estoques de carbono são mantidos, o que gera créditos para venda a clientes interessados em compensação de emissões.

Os titulares dos certificados emitidos pelo FSC são a Incorporadora Manicoré, no caso da fazenda com 39,6 mil hectares de vegetação amazônica, e a M.I. Incorporadora, no caso do imóvel rural com 82,8 mil hectares.

O primeiro certificado segue válido até 2028, segundo informações públicas do FSC. O certificado concedido à M.I. Incorporadora foi suspenso em 2 de dezembro de 2024. A validade dele era até 2029.

A reportagem questionou o FSC Brasil sobre a atuação da Neocert nos dois casos e se há um conflito de interesses, pelo fato de a BRCarbon, pertencente a um mesmo grupo empresarial, atuar como gerente das florestas certificadas, na outra ponta, para fim de geração de créditos de carbono.

Segundo o FSC, uma resposta deveria ser dada pelo ASI (Assurance Services International), parceiro acreditador da entidade que tem a atribuição de supervisionar o desempenho dos certificadores. “O padrão do FSC inclui disposições para evitar esse tipo de confito de interesses.”

Em nota, o ASI afirmou que foi informado sobre um risco relacionado à imparcialidade na atuação nos casos e tratou do assunto em 2024.

Um relatório foi enviado à Neocert, e os achados tratados no relatório seguirão sob análise para que a certificadora esteja de acordo com os princípios de imparcialidade necessários nas avaliações de manejo florestal, disse o ASI. Caso padrões não sejam seguidos, empresas podem ser responsabilizadas, segundo a parceira do FSC.

A Neocert disse, em nota, reconhecer que “potenciais conflitos de interesse podem surgir no âmbito da certificação”. “Por essa razão, certificadoras precisam desenvolver mecanismos robustos para mitigar esses riscos.”

A certificadora e a BRCarbon compartilham o mesmo investidor, mas têm gestões e equipes separadas, afirmou. “O fato de todas as informações relevantes estarem explicitamente disponíveis em relatórios públicos demonstra nosso compromisso com a transparência.”

Já a BRCarbon disse que não realiza projetos de créditos de carbono na fazenda da M.I. Incorporadora, mas na área da Incorporadora Manicoré.

“A BRCarbon não desenvolve projetos de manejo florestal. Nunca contratou ou foi auditada diretamente por Neocert. A BRCarbon atua de maneira totalmente independente em relação a outras empresas investidas pelo TMNH, assegurando a imparcialidade de suas operações”, afirmou, em nota. “Não se configura nenhum tipo de conflito de interesse.”

A assessoria do empresário Moacir Crocetta Batista, dono de empresas como a M.I. Incorporadora, afirmou que os certificados emitidos pelo FSC dizem respeito a trabalhos de conservação e que não há nada sobre exploração de madeira.

O empresário tenta explorar ainda créditos de biodiversidade, semelhantes a créditos de carbono. O empreendimento foi multado por desmatamento ilegal na mesma fazenda destinada à geração de créditos de biodiversidade e de carbono, como mostrou reportagem publicada pela Folha de S.Paulo em 10 de dezembro.

No último dia 17, outra reportagem mostrou a conexão entre Neocert e uma madeireira denunciada pelo MPF (Ministério Público Federal) e multada por três órgãos ambientais federais em razão de supostas ilegalidades com toras extraídas na amazônia.

O dono da madeireira Samise, Indústria, Comércio e Exportação é também dono da TMNH, que por sua vez é sócia de Neocert e BRCarbon.

A madeireira atua em uma concessão florestal -por meio de um contrato de 2014- na Flona (Floresta Nacional) de Saracá-Taquera, no noroeste do Pará. A Samise ficou inadimplente na execução do contrato da concessão. Em novembro de 2022, o valor da dívida foi calculado em R$ 1,58 milhão.

Por descumprimento de cláusulas, o SFB -vinculado ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima- determinou a suspensão do contrato, em agosto de 2023, com proibição de corte de árvores, transporte de toras e abertura de novos pátios florestais. Em outubro, o órgão aplicou uma multa de R$ 367,9 mil à Samise.

No mesmo mês da suspensão do contrato, o Ibama multou a Samise em R$ 4,99 milhões, por execução de manejo florestal sem autorização prévia por órgão ambiental.

A Neocert afirmou que a TMNH não participa da “gestão operacional” ou das decisões relacionadas às certificações. A defesa da Samise disse que aguarda o cumprimento do devido processo legal pela administração pública e pela Justiça, após apresentação da defesa e de contestações em relação às multas aplicadas.