SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Refugiados que estiveram presos no centro de detenção de migrantes administrado pelos Estados Unidos na baía de Guantánamo, em Cuba, denunciaram em 2024 maus-tratos e condições degradantes na instalação, incluindo exposição a esgoto a céu aberto, infestações de ratos e falta de água potável.
As acusações, publicadas em 2024 por uma ONG americana, levantam nova preocupação a respeito do plano anunciado na quarta-feira (29) pelo presidente dos EUA, Donald Trump, de expandir o centro para aprisionar até 30 mil migrantes em situação irregular detidos em solo americano.
A base naval dos EUA em Guantánamo, sob controle de Washington desde o final do século 19, ficou conhecida pelos casos de tortura cometidos por órgãos como a CIA contra pessoas acusadas de terrorismo após os ataques de 11 de setembro de 2001.
Entretanto, apesar da fama da prisão para acusados de terrorismo, pouco se sabe sobre o centro de detenção de migrantes que o governo dos EUA também opera no local.
Até mesmo seu tamanho é incerto: no ano passado, o Departamento de Segurança Interna disse haver quatro pessoas presas na instalação, mas não há informações atualizadas a respeito. Grupos de defesa dos direitos humanos nos EUA processam o governo americano para que documentos detalhando as características e o número de migrantes no centro de detenção sejam liberados.
Desde 2002, os EUA atuam nas águas ao redor da base naval de Guantánamo para interceptar migrantes que tentam chegar ao país norte-americano, vindos principalmente de Cuba e Haiti. O objetivo é o de retorná-los a seus países antes que possam pedir direito a asilo em solo americano.
Segundo um relatório publicado em março de 2024 pela IRAP (Projeto Internacional de Assistência a Refugiados, na sigla em inglês), uma entidade voltada à proteção e defesa jurídica de refugiados, a grande maioria desses migrantes são enviados de volta imediatamente. Alguns, entretanto, ficam presos no centro de detenção de Guantánamo por longos períodos.
Isso acontece porque, segundo a IRAP, os EUA se recusam a enviar refugiados e pessoas que pedem asilo interceptadas em Guantánamo para território americano. Em vez disso, esses migrantes, entre eles crianças, ficam detidos em Cuba enquanto aguardam deportação para países terceiros que aceitem recebê-los -uma prática que a IRAP afirma ser ilegal, uma vez que os EUA têm a obrigação, sob a lei internacional, de acolhê-los em seu território.
O governo dos EUA diz que os migrantes não estão detidos e têm a opção de voltar para seus países de origem a qualquer momento -uma escolha que o relatório da IRAP chama de fictícia, dado o fato de que muitas dessas pessoas estão fugindo de violência e perseguição e não podem retornar em segurança.
O relatório da organização detalha as violações de direitos humanos cometidas no centro de detenção, operado por empresas privadas envolvidas no setor prisional americano em conjunto com a OIM, uma agência ligada à ONU.
Segundo as denúncias de migrantes, a estrutura do centro de detenção é precária, com esgoto inundando parte do prédio, mofo e uma infestação de ratos nas celas. Os guardas do centro proíbem a comunicação dos detidos com o mundo exterior, confiscando celulares e punindo tentativas de fazer ligações com prisões em solitárias que podem durar dias.
Em um incidente específico, refugiados relataram aos guardas que a água das torneiras, única fonte de hidratação no centro, estava saindo com cor amarela, ao que os agentes responderam que o líquido era, sim, potável.
Quando um dos migrantes pediu que o agente bebesse a água amarelada para provar, foi punido com uma semana de confinamento solitário. Os outros refugiados, forçados a tomar a água das torneiras, tiveram crises de vômito e diarreia.
O relatório da IRAP concluí que Washington deveria fechar o centro de detenção, enviar os refugiados detidos ali para os EUA para que seus pedidos de asilo sejam processados, e investigar as denúncias de abusos cometidos na base em Guantánamo.
Nesta quinta-feira (30), a IRAP criticou a decisão do governo Trump de expandir o centro. “Todos deveriam estar alarmados pela tentativa do presidente de criar um campo de detenção em massa apartado de qualquer fiscalização independente”, disse em nota o advogado Deepa Alagesan. “Refugiados já são detidos em Guantánamo sob condições desumanas. Expandir a instalação seria desastroso.”
O Centro para Direitos Constitucionais, organização dos EUA que faz a defesa legal de alguns dos acusados de terrorismo em Guantánamo, disse que a medida é aterrorizante. “Utilizar um símbolo global do arbítrio, tortura e racismo como Guantánamo para abrigar imigrantes é vergonhoso.”
Cuba acusa historicamente os EUA de ocupar Guantánamo ilegalmente e se recusa a aceitar o aluguel pago por Washington pelo território, cerca de US$ 4 mil mensais. Na quarta, o dirigente cubano, Miguel Díaz-Canel, chamou o anúncio de Trump de “um ato de brutalidade”, e o ministro das Relações Exteriores afirmou que a decisão é “um ato que demonstra desprezo pelo ser humano e pela lei internacional”.
Muitos dos acusados de terrorismo após o 11 de setembro estão presos em Guantánamo até hoje, com sua libertação impedida pelo limbo jurídico no qual se encontram e pela falta de vontade política do governo americano de fechar a prisão, como relatou a Folha de S.Paulo em visita à base naval em fevereiro de 2024.
Ao anunciar sua intenção de utilizar Guantánamo como parte da cruzada anti-imigração que vem sendo um dos pilares de seu novo mandato, Trump reverte uma tendência que se iniciou com o ex-presidente Barack Obama de diminuir o uso das instalações, associadas com algumas das piores violações de direitos humanos cometidas pelos EUA no século 21.
Obama fez do fechamento da prisão em Guantánamo uma promessa de campanha, mas não conseguiu apoio do Congresso americano para torná-la realidade. Já o ex-presidente Joe Biden não tratou do tema como uma prioridade, e avanços nas negociações jurídicas para esvaziar a prisão acabaram suspensas com a vitória de Trump nas eleições.