SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em um festival dedicado à cultura contemporânea, Tiradentes reservou este ano um espaço privilegiado à, digamos, velha guarda. Já mostraram seus trabalhos e falas Antonio Pitanga, depois Julio Bressane, e agora Luna Alkalay, a mais surpreendente e menos conhecida desse grupo.

Num momento em que o cinema feminino busca se afirmar em igualdade com o dos homens, Luna emerge de um tempo em que se botava menos fé em mulheres que dirigiam filmes do que nas que dirigiam automóveis. Em vários casos busca-se a reparação. O seu é um pouco diferente.

A autora do recém-restaurado “Cristais de Sangue” (1975) retorna 50 anos depois com “Trópico de Leão”, exibido na quarta-feira. Se o primeiro filme existiu, segundo ela, como resistência à ditadura, o “Trópico” vai em outra direção, ao narrar a história de uma mulher com mais de 70 anos, recém-saída de um relacionamento desigual com um homem quase 40 anos mais jovem.

Luna Alakalay, que foi aluna de Filosofia na FFLCH entre os anos 1960 e 70, convoca aqui figuras mitológicas para compor seu repertório: Caronte, Eco, Penélope, Medeia -cada um traz um significado preciso e funciona como parceiro na busca para se livrar de Narciso: o tal jovem com quem teve um romance.

Luna fala de si mesmo como “velha”, que prefere a idosa. E isso levou “Trópico de Leão” a ser vivamente aceito pelas mulheres: o filme introduz o viés da vida afetiva e sexual das mulheres de mais idade com toda veemência a que tem direito, na medida em que trata de uma relação abusiva, em que o homem se aproveita da fragilidade da mulher “velha”.

O importante, no caso, é que Alkalay trabalha a questão de maneira original: coloca-se ora no centro de uma mesa de estudos do roteiro do filme, ora coloca em ação as figuras mitológicas que lançou no roteiro. E assim desenvolve a busca por si mesma de uma mulher que, após o abandono, pensa seriamente em suicídio.

Este filme-ensaio repete o trajeto da diretora, que realiza uma viagem de autoconhecimento ao fim do qual, afirma, o trágico se torna dramático. A submissa Eco pede a Caronte que a mate, o que ele faz. A conformada Penélope destrói a teia que todos os dias tecia e depois desfazia. Medeia, por fim, vinga-se.

E o feminismo, que se sempre se bateu de maneira um tanto abstrata pela libertação feminina encontra neste filme-ensaio inteligente e nada desprovido de talento um novo aspecto a explorar.

O tema proposto para o ano, “Que Cinema É Esse?, em princípio um tanto misterioso, abre-se no entanto à reflexão, sobretudo à luz da maior parte dos filmes exibidos em Tiradentes. Esse cinema, com algumas exceções, conseguirá ir para os cinemas?

Ou para alguma TV por assinatura que não seja o Canal Brasil? Ou para o streaming? Em média, temos filmes interessantes, por vezes realmente bons, mas seriam “distribuíveis”, digamos assim?

Essa é a questão, ou talvez seja melhor dizer, o desafio que a 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes lança aos cineastas: fazer bons filmes, não submetidos a um gosto médio que ocupa as salas comerciais tipo Cinemark, mas não tão voltados a si mesmos que interessem apenas a públicos muito específicos, nos melhores casos, ou a ninguém, nos piores.

Na quarta-feira, muito prejudicada pela chuva forte e intermitente, há ao menos dois outros filmes que se destacaram: “Deuses da Peste”, de Gabriela Luiza e Thiago Mata Machado, e “#Sem Título 9: Nem Todas as Flores da Falta”, de Carlos Adriano.

Adriano é nosso maior especialista em filmes de montagem: trabalha filmes de arquivo buscando ressignificar fragmentos; na série “#Sem Título” compõe uma espécie de autobiografia composta a partir de filmes de outros.

Não é possível falar de “A Voz de Deus”, onde Miguel Antunes Ramos filma, durante anos, a vida, ambições e dúvidas de dois pregadores infantis, mas pelo que mostrou na sessão “Corte Final” é para esperar pelo melhor.