SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) – Dourados pelo sol onipresente da Bahia, corpos esculpidos no trabalho da pesca ou castigados por dias, noites e madrugadas na labuta em mar aberto transitam entre uma paróquia e uma casinha simples, mas arrebatadora, dedicada à Iemanjá. Devotos da entidade, considerada, segundo religiões de matriz africana, a protetora de pescadores e marinheiros, entram ali para fazer um pedido ou agradecer uma graça.

Estamos na Casa de Iemanjá, na praia do Rio Vermelho, bairro boêmio de Salvador, uma das cidades mais festivas do Brasil. No dia 2 de fevereiro, a pequena orla, com aproximadamente 400 metros de extensão, deve ser totalmente tomada por uma multidão de soteropolitanos e forasteiros. Católicos, cristãos, umbandistas, candomblecistas, kardecistas, gente sem crença e ateus se conectam numa manifestação tanto religiosa quanto profana.

“Até o presente sair e ir para o mar, podemos dizer que é uma festa religiosa”, diz Nilo Silva Garrido, de 59 anos, 43 deles dedicados à pesca, referindo-se a entrega de presentes ao orixá. “Depois que a oferenda é lançada ao mar, a festa vira profana e, aí, muda a energia.” Presidente da Colônia de Pescadores Z-1, principal detentora da Festa de Iemanjá, ele também é um importante barqueiro do evento.

As homenagens à “Rainha do Mar” começam por volta das 5h, com a alvorada. O ritual é iniciado pelos pescadores em gratidão pela fartura que vem das águas. Na areia, barquinhos miniaturas, carregados pelos fiéis, cortam as águas embalados com flores, velas e imagens. Na beira da praia, come-se e bebe-se. Festeja-se.

O presente principal e outros mimos são transportados pelos barcos da colônia. Eles seguem um cortejo alinhado pelas embarcações em direção a um ponto específico em alto-mar, a cerca de 5 km da costa, chamado de buraco de Iaiá, em formato de concha.

A festa configura-se como uma das principais manifestações populares da Bahia. De acordo com Gegê Magalhães, diretor de Turismo de Salvador, ao menos 1 milhão de pessoas devem participar do evento deste ano, já que o dia 2 cai num domingo.

Do lado de fora da morada, uma imagem de Iemanjá, esculpida pelo artista plástico negro baiano Manuel Bonfim (1928-2016), obra de 56 anos de história, acaba de ser restaurada. Seis barcos de pescadores da colônia, incluindo a embarcação Rio Vermelho, responsável por conduzir o presente principal, foram requalificados para o uso na festa como parte do processo de salvaguarda do patrimônio cultural.

Chicco Assis, de 44 anos, diretor de patrimônio e equipamentos culturais da FGM (Fundação Gregório de Mattos), explica que o cortejo vem sendo promovido pelos pescadores de Salvador desde a década de 1920. Naquela época, a celebração era chamada “Presente da Mãe d’Água”.

Tal tradição teria partido de 25 pescadores que resolveram presentear a “Rainha do Mar”, na expectativa de acabar com o problema de escassez de peixes no mar. Assis conta que somente na década de 1950 a manifestação foi oficializada como Festa de Iemanjá. É a maior celebração a um orixá no Brasil.

O vaivém se inicia no dia anterior junto ao caramanchão montado ao lado da Colônia de Pescadores Z-1, no largo de Santana.

O caramanchão, explica Assis, é um tipo de galpão ornado onde os devotos colocam os presentes que, no dia seguinte, serão embarcados e depositados no mar.

A procissão marítima à Iemanjá parte da praia do Rio Vermelho por volta das 15h30, com término previsto para as 18h. A comemoração costuma seguir durante a noite, a depender da animação dos festeiros.

Dentre as superstições que envolvem as homenagens à Iemanjá, conta Vagner Rocha, gerente de patrimônio cultural da FGM, uma delas está relacionada à receptividade dos presentes.

“Diz a lenda que caso o donativo seja encontrado na beira da praia é porque a divindade não gostou da oferta. Se afundar no mar, é sinal de que foi aceito.”

A cada ano, uma comissão de pescadores da colônia escolhe o artista que irá confeccionar o presente principal e o terreiro de candomblé responsável pelos ritos em homenagem à rainha.

Outras oferendas lotam 600 balaios que também são conduzidos ao mar pelos pescadores da Z-1. Flores, perfumes, espelhos, colares e pentes constam da lista de doações, apesar de apelos ambientais contra o lançamento de objetos que poluem o mar.

“Em todas as festas, reforçamos o trabalho para que as oferendas não tragam produtos que afetem a saúde já debilitada dos oceanos. Se for ofertar um perfume, por exemplo, que lance ao mar apenas o líquido, sem a embalagem”, reforça o diretor de patrimônio.

Desde de 2020, a festa é reconhecida como Patrimônio Cultural de Salvador. Toda a cidade se mobiliza em torno dela. No Rio Vermelho, apartamentos de aluguel já se encontram indisponíveis, assim como hotéis do bairro já estão quase todos lotados -a maioria deles realiza eventos dedicados à divindade.

Em frente à praça Castro Alves, ponto histórico da Bahia, o Hotel Fasano organiza em seu rooftop uma festa no dia 1º, com música e bebida liberada, por R$ 725 por cabeça. Na mesma noite, no aprazível bairro Caminho das Árvores, o premiado restaurante Origem, dos chefs Fabricio Lemos e Lisiane Arouca, prepara um jantar em homenagem à “sereia”. O menu degustação sai por R$ 360 ou R$ 670, com vinhos.

A véspera do dia de Iemanjá também é data importante no calendário celebrativo da Bahia, pontuado por tantas outras solenidades.

Assis explica que no dia 1º de fevereiro outro orixá é presenteado: Oxum, a cultuada rainha da água doce. Um presente é entregue a ela no Dique do Tororó, manancial natural de Salvador, numa manifestação conhecida como Sórodó, ato de levar oferendas para as águas, o que na verdade constitui um resgate de uma tradição forjada em uma experiência de fé.

Enquanto no catolicismo baiano a divindade de Iemanjá corresponde à Nossa Senhora das Candeias, em outras regiões ela se conecta com Nossa Senhora dos Navegantes ou simplesmente se aproxima à figura da Virgem Maria, explica Vagner Rocha.

Há, ainda na avaliação do pesquisador, processos de sincretismos com a cultura indígena, de onde partiram as correlações com a Mãe d’Água, também chamada de Iara ou Janaína, o que justifica sua representação como sereia.

A saudação mais popular, contudo, segue a mesma: Odoyá!