PEQUIM, EUA (FOLHAPRESS) – O aplicativo de inteligência artificial da chinesa DeepSeek saltou para o primeiro lugar na lista de downloads da loja da Apple nos Estados Unidos, nesta segunda (27). E as ações de gigantes americanas de tecnologia despencaram, nesta manhã.

A fabricante de chips Nvidia caía 6,9% nas negociações de pré-abertura do mercado americano, enquanto os fabricantes de chips AMD e Micron Technology recuavam 3,7% e 6,4%, respectivamente.

A Microsoft e a Meta caíam 3,3% cada. Ambas divulgarão seus resultados trimestrais nesta semana, junto da Apple e Tesla. A Alphabet, controladora do Google, perdia 3,2%, e a Apple tinha baixa de 1,4%.

O futuro do S&P 500 caía 2,57%, enquanto o contrato futuro do Nasdaq 100 tinha queda de 4,57%, e o futuro do Dow Jones recuava 0,81%.

O modelo lançado pela empresa chinesa na semana passada está sendo saudado pelo investidor e engenheiro americano Marc Andreessen, referência histórica do Vale do Silício, como “o momento Sputnik da inteligência artificial”. A expressão se refere ao lançamento do satélite soviético em 1957, que levou os EUA à corrida espacial.

A apresentação do modelo anterior de IA pelo DeepSeek, há perto de um mês, já vinha provocando reação por parte de empresas americanas -e também chinesas.

As ferramentas são disponibilizadas gratuitamente no site da DeepSeek, inclusive no Brasil e em português, e permitem ações como: tradução e geração de textos, análise de grandes volumes de dados e projeções, auxiliar na pesquisa e “até na redação de trabalhos acadêmicos”, escrever códigos em linguagens como Python, automatizar suporte para atendimento a clientes etc.

Mais importante, tanto o modelo anterior (V3) como o da semana passada (R1) têm desempenho semelhante ou, em cada vez mais áreas, superior àquele do ChatGPT, da OpenAI, e do Llama, da Meta. E com custo declaradamente muito menor.

O site The Information, hoje o principal veículo noticioso de tecnologia, informou que a Meta, de Mark Zuckerberg, criou grupos especializados de pesquisadores para entender como a DeepSeek cria seus modelos, para usar o conhecimento em sua própria produção.

O impacto da DeepSeek nas big techs americanas se evidenciou na entrevista de Zuckerberg ao podcast de Joe Rogan, no último dia 11. Por iniciativa própria, o empresário falou que “tem esse ótimo modelo chinês que acabou de sair, dessa empresa, DeepSeek, eles estão fazendo um trabalho muito bom, é um modelo muito avançado”.

E partiu para o ataque: “Se você pedir alguma opinião negativa sobre Xi Jinping, ele não lhe dará nada”. Foi a primeira de uma série de tentativas de questionar a DeepSeek, seguida de respostas na própria comunidade americana de tecnologia.

O investidor americano de origem chinesa Kevin Xu, que foi da Casa Branca e do Departamento de Comércio no governo Barack Obama, testou e descobriu que, quando baixado no notebook, o modelo da DeepSeek responde ao ser questionado sobre o líder chinês:

“Em termos de direitos humanos, alguns críticos argumentam que Xi reprimiu de forma mais dura do que líderes chineses anteriores em várias áreas como liberdade de mídia”. Ou seja, fora da China e da nuvem da empresa, os modelos de código aberto da DeepSeek sabem e podem oferecer tanto quanto seus concorrentes, inclusive sobre Xi.

Na semana passada, o fundador da empresa, Liang Wenfeng, foi a principal atração de um encontro de especialistas em tecnologia com o primeiro-ministro Li Qiang, que surgiu sorridente na conversa com o empresário, na transmissão da rede CCTV. Paralelamente, a agência oficial Xinhua despachou um texto sobre a DeepSeek, destacando que “os avanços da inteligência artificial da China frustram a política de repressão dos EUA”.

É o que afirmam também os especialistas americanos. Paul Triolo, vice para China e tecnologia na consultoria estratégica ASG, de Washington, diz que “a DeepSeek aponta para as fraquezas na abordagem do governo Joe Biden, que partia do pressuposto de que os modelos avançados só podem ser produzidos” com grande quantidade de chips de ponta –daí a proibição de sua venda à China.

A empresa chinesa agora “demonstra o potencial de um pequeno grupo de engenheiros, muito capazes, para alavancar recursos limitados e desenvolver IA avançada”. E seus modelos de código aberto podem agora ser adotados por desenvolvedores ao redor do mundo, tirando mercado dos concorrentes americanos.

Patrick Zhang, ex-funcionário do Ministério do Exterior da China, hoje no setor de tecnologia e publicando análises na newsletter Geopolitechs, avalia que a DeepSeek acima de tudo “representa uma vitória do código aberto sobre o código fechado”. Mas alerta que o custo dado como baixo, para o desenvolvimento de seus modelos, não representa integralmente o investimento feito.

Triolo também ressalva que a DeepSeek está nos primeiros passos e é preciso aguardar o teste do tempo, para saber se seu custo declaradamente baixo será, de fato, viável. Ele mesmo acrescenta, porém, que o modelo V2, em meados do ano passado, já causou impacto ao se aproximar do desempenho do Llama 3, da Meta.

Foi nessa época, em julho, que o fundador Liang Wenfeng deu uma rara entrevista que embasa até hoje o pouco que se sabe sobre a filosofia da DeepSeek, empresa que ainda vai completar dois anos, em maio. Ele falou a um veículo noticioso de nome traduzido para o português como Ondas.

Sobre por que desenvolver modelo próprio, em vez de recorrer àqueles de código aberto já então existentes: “O nosso objetivo é AGI [Artificial General Intelligence, IA que visa se equiparar à capacidade humana], o que significa que precisamos estudar novas estruturas de modelos para realizar uma mais forte, com recursos limitados”.

Sobre se concentrar em pesquisa e desenvolvimento, não em aplicação: “O mais importante agora é participar da onda global de inovação. Por anos, as empresas chinesas se acostumaram a deixar outros inovarem, enquanto nós focávamos em monetização da aplicação. Mas isso não é inevitável. Nosso objetivo [na DeepSeek] é dirigir o desenvolvimento de todo o ecossistema”.

A chegada do V2 havia mexido com o mercado chinês de modelos de IA, levando Zhipu, ByteDance, Alibaba, Baidu e outros a reduzirem preços. Sobre isso, ele disse: “Nosso princípio é que não subsidiamos nem buscamos lucros exorbitantes. Esse ponto de preço nos dá apenas uma pequena margem de lucro acima dos custos”.

Referindo-se à série de televisão “Blossoms Shanghai”, sobre a ascensão econômica de Xangai nos anos 1990, que descreve as novas empresas agressivas da época como peixes-gatos, Liang comentou: “Nós não queríamos nos tornar um peixe-gato, apenas nos tornamos, acidentalmente”.