SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Os bebês que viviam nas grandes cidades do Império Romano costumavam ser desmamados bem mais cedo do que os da zona rural, e uma possível explicação pode estar nos manuais médicos da Antiguidade, que recomendavam o fim do aleitamento materno no máximo aos dois anos de idade.
A hipótese vem de um estudo que comparou os padrões de desmame em quatro locais que integraram o território imperial durante séculos: os centros urbanos de Pompeia, na Itália, e Tessalônica, na Grécia, e vilarejos rurais em Bainesse (atual norte da Inglaterra) e Óstia, o antigo porto de Roma, a uns 25 km da capital.
No trabalho publicado no último dia 14 na revista especializada PNAS Nexus, a equipe liderada por Carlo Cocozza, do Instituto Max Planck de Geoantropologia, na Alemanha, detalha as análises dos chamados isótopos estáveis nos dentes da população do império.
O termo designa variantes de um elemento químico que não sofrem alterações radioativas ao longo do tempo (daí a sua estabilidade). Os isótopos estáveis relevantes para a investigação feita pela equipe são formas mais “pesadas” dos elementos químicos carbono e nitrogênio, o carbono-13 e o nitrogênio-15.
A proporção deles na matéria orgânica, quando comparada à de formas mais comuns desses elementos, ajuda a estimar qual era a alimentação de seres humanos (ou outros animais) ao longo do tempo. O consumo de leite materno, por exemplo, tende a fazer com que ocorra um acúmulo proporcionalmente maior de nitrogênio-15 no organismo.
Como esqueletos de crianças pequenas nem sempre se preservam com facilidade, sem falar no fato de que, na Antiguidade, era comum que elas morressem antes de ser desmamadas, Cocozza e seus colegas acharam uma maneira engenhosa de obter uma espécie de “filme” do processo de amamentação e desmame.
A chave é um dente, o primeiro molar permanente da nossa espécie (designado com a sigla M1). O ciclo de desenvolvimento dele faz com que ele incorpore componentes derivados da alimentação entre os três meses e os 9,5 anos de idade. Esse “sinal” pode ser analisado a partir das camadas de formação da dentina, parte do dente que fica embaixo do esmalte.
Ou seja, as camadas da dentina trazem pistas sobre as mudanças na alimentação ao longo de todos esses anos da infância, abrangendo inclusive o período crítico do desmame e da introdução de outros alimentos na dieta da criança.
Com base nisso, a equipe não precisou obter a dentição de meninos e meninas da época romana: bastou examinar a composição isotópica de primeiros molares permanentes com a dentina bem preservada. A amostragem total usada por eles incluiu 45 indivíduos das quatro localidades.
Após a medição dos isótopos, eles verificaram que, nas cidades de Pompeia e Tessalônica, cerca de 75% das pessoas foram desmamadas antes ou em torno de completar dois anos de idade. Já nos sítios rurais de Óstia e Bainesse o padrão se inverte, com cerca de 80% dos indivíduos passando pelo desmame após os dois anos de vida -em alguns casos, por volta dos cinco anos.
A idade preferida para o desmame nos centros urbanos imperiais coincide, em linhas gerais, com as orientações de manuais médicos da época, como a “Ginecologia”, de Sorano, e a “Higiene”, de Galeno (ambos do século 2º d.C.) e as “Collectiones Medicae” de Oribásio (século 4º d.C.). Tais médicos defendiam um início do desmame a partir dos seis meses de vida, com a paulatina substituição do leite materno por mingaus e, depois, alimentos cada vez mais sólidos, completando o processo aos dois anos de idade.
O conhecimento desses médicos pode ter chegado à população com maior renda das cidades por meio de consultas a profissionais de saúde ou mesmo pela leitura dos tratados especializados.
Por outro lado, o desmame relativamente precoce pode ter ocorrido apenas por conta de mudanças culturais e econômicas relacionadas à vida em grandes cidades, enquanto a zona rural do império mantinha tradições mais antigas quanto ao cuidado com os bebês.