SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em duas décadas, os Estados Unidos importaram, legalmente, mais de 860 milhões de aracnídeos, cerca de 815 milhões de vertebrados e outras centenas de milhões de plantas e animais.

Os espécimes importados representam quase 30 mil espécies distintas, o que caracteriza o mercado americano como um dos maiores do mundo em termos de troca de vida selvagem. Cerca de metade dos indivíduos vêm de habitats naturais, representando um risco ao meio ambiente e à biodiversidade global.

Os dados são de um novo estudo com pesquisadores de diversos países, publicado neste mês na revista especializada PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences). O trabalho calculou o impacto da troca de vida selvagem no país.

Com base em um relatório divulgado pelo Lemis (Sistema de Gestão da Informação da Lei, na sigla em inglês), de 1º de janeiro de 2000 a 30 de junho de 2022, foram registradas 8,7 milhões de entradas únicas no sistema, dos quais mais de 99% foram liberados para importação.

Destes, muitos eram lotes ou partes de indivíduos. Contabilizando apenas aqueles que continham indivíduos únicos (uma mesma entrada podia conter centenas a milhares de espécimes), as autoridades americanas registraram 2.847.052.429 indivíduos no mercado legal de vida selvagem no país, representando 21.135 espécies distribuídas em 10.452 gêneros.

Os aracnídeos foram o grupo animal com maior número de indivíduos comercializados (aproximadamente 864 milhões, ou 30% do total), seguidos por peixes (599 mi) e insetos, centopeias e lacraias (551,5 mi). Já em número de entradas únicas, os mamíferos terrestres tiveram mais de 1,34 mi de registros (39% do total), seguidos de cnidários e equinodermos (estrelas-do-mar, ouriços-do-mar, dentre outros, representando 26%).

De acordo com Alice Hugues, professora da Escola de Ciências Biológicas da Universidade de Hong Kong e líder do estudo, com base no levantamento, a venda legal de vida selvagem nos EUA pode ter um valor até dez vezes maior do que o estimado.

“Se formos pensar que nosso estudo avaliou dados oficiais, onde 99,99% é legal e apenas 0,01% é de tráfico ilegal, um dos maiores problemas para a proteção da biodiversidade é que realmente não temos sequer os dados sobre aquilo que não é registrado.”

Os pesquisadores também cruzaram os dados do Lemis com a lista Cites (Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas), que compila as espécies de fauna e flora ameaçadas globalmente e que são proibidas para venda.

Na lista Cites, foram registradas adicionalmente 8.116 espécies de plantas, fazendo com que o número total de espécies trocadas no período saltasse para 29.445.

Segundo Hugues, essas diferenças ocorrem porque o sistema que gerencia a entrada de sementes e plantas no país é o Departamento de Agricultura (USDA, na sigla em inglês), enquanto animais, exceto alguns grupos de peixes, que são registrados pelo Departamento de Pesca, são contabilizados pelo Lemis.

A maioria dos países, porém, ainda carece de dados como os do relatório americano, o que torna difícil fazer uma avaliação do impacto em nível global.

“A lista Cites só inclui aquelas espécies e grupos para os quais há uma avaliação de risco, mas para a maioria da vida selvagem não há nenhuma informação confiável, o que leva à situação do ‘ovo e da galinha’: como proteger algo que não se tem informação sobre a necessidade de proteger?”, indaga a cientista.

O mercado de vida selvagem nos EUA é considerado a terceira maior troca ilegal de mercadorias, atrás apenas do tráfico de drogas e armas. Além das transações a partir de vida selvagem, muitos indivíduos também vêm de cativeiros ou de criações para fins agropecuários. Alguns deles são retirados dessas instalações e comercializados de países onde as legislações de proteção são mais frouxas ou faltam dados de avaliação do risco.

A pesquisadora ressalta que esses “subterfúgios” são, muitas vezes, utilizados por comerciantes do mercado legal de vida selvagem.

“Muitas vezes, para alguns grupos, só temos o código ‘Lep’ [de lepidópteros, grupo que inclui as borboletas e mariposas], ou ‘aracnídeos’, o que pode abranger tanto tarântulas para o mercado pet quanto ácaros e outros agentes biológicos para controle de pragas. Então desagregar esses dados é muito difícil”, diz Hugues.

Outro ponto de avaliação é que muitas das espécies comercializadas, especialmente de invertebrados ou de vertebrados de pequeno porte, são encontradas apenas em alguns lugares na natureza, e a sua comercialização pode trazer um efeito na população, levando-as a um maior risco de extinção.

Por exemplo, a lista Cites inclui apenas 2,4% das espécies de anfíbios, mas o levantamento apontou que 9% delas foram vendidas. Em relação aos répteis, menos de 9% foram listados pela Cites, mas 43% apresentaram registros de comercialização. Diante desse cenário, afirma a pesquisadora, muitos cientistas já estão optando por não indicar o local de vida ou de descoberta de novas espécies animais.

Além dos impactos à proteção da fauna e da flora, a pesquisadora lembra dos riscos também associados à propagação de patógenos e o potencial pandêmico da introdução de espécies exóticas em outros países.

Um desses problemas foi a introdução de aves no Havaí que eram portadoras do protozoário causador da malária. Isso levou a uma extinção em massa dos pássaros nativos da ilha.

“O comércio sustentável da vida selvagem deveria ser um pilar tanto dos comerciantes quanto da lista Cites, uma vez que é um mercado forte”, destaca.

“Infelizmente, barreiras como descentralização de dados, falta de avaliação regional ou de coordenação de ações de proteção a nível global acabam afetando negativamente tanto o comércio legal de plantas e animais como os ecossistemas como um todo”, ressalta também.