BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de sancionar o dispositivo que autoriza a federalização de empresas estatais para abater dívidas de estados com a União pode trazer dor de cabeça no futuro, segundo avaliação de integrantes do próprio governo ouvidos pela reportagem.

O petista decidiu validar o artigo para evitar atritos com o Congresso, amparado na interpretação do Ministério da Fazenda de que a União precisa concordar com a operação para que ela saia do papel.

No entanto, três técnicos de diferentes áreas do governo admitem que há risco de estados endividados recorrerem ao STF (Supremo Tribunal Federal) para obrigar a União a aceitar esses ativos, independentemente de vontade ou conveniência.

A federalização é uma das principais bandeiras do programa de socorro patrocinado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Minas Gerais, estado pelo qual ele foi eleito, é um dos mais endividados e pretende oferecer a Cemig e outras companhias para reduzir seu passivo e acessar descontos maiores nos juros daqui para frente.

O dispositivo ainda depende de regulamentação, mas interlocutores dos estados já reconhecem que a via judicial pode ser usada para “fazer valer o comando” da lei complementar.

Procurados, Fazenda e AGU (Advocacia-Geral da União) não se manifestaram até a publicação deste texto.

O histórico de demandas judiciais bem-sucedidas dos entes estaduais torna o risco ainda mais palpável.

Só no ano passado, diferentes ministros do STF concederam decisões que suspenderam penalidades do RRF (Regime de Recuperação Fiscal) ao Rio de Janeiro, asseguraram o ingresso de Minas Gerais no programa de socorro e mantiveram Goiás sob a mesma proteção, a despeito de o próprio Tesouro Nacional ter informado que o estado não precisava mais da ajuda federal.

No caso do Rio de Janeiro, o ministro Dias Toffoli manteve, até junho de 2025, a prestação dos encargos da dívida com a União no mesmo valor de 2023, embora a Fazenda tenha apontado a violação de condições do acordo que, pela lei do RRF, deflagrariam um aumento na cobrança como punição.

Decisões anteriores a 2024 também mostraram um Judiciário sensível às demandas dos estados. O STF já aceitou argumentos de calamidade financeira para suspender bloqueios feitos pela União para se ressarcir de empréstimos não pagos pelos estados a instituições financeiras e que precisaram ser honrados pelo Tesouro Nacional.

Mesmo quando havia dinheiro em caixa, a Corte atendeu aos pedidos. Em 2021, o Rio de Janeiro embolsou R$ 18,2 bilhões com o leilão de concessão da Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos), cujas ações eram dadas como contragarantia em um empréstimo que a União quitou no lugar do estado. O governo fluminense recorreu ao STF para não precisar reembolsar o governo federal, e o pagamento de R$ 4,3 bilhões foi diluído em 30 anos.

O governo Lula autorizou a federalização de estatais estaduais no âmbito do chamado Propag (Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados). A manutenção deste trecho foi costurada em reunião dos ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Rui Costa (Casa Civil) com Pacheco e o senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), favorito para assumir o comando do Senado a partir de 1º de fevereiro.

A decisão contrariou a recomendação inicial da equipe econômica, que defendeu vetar o artigo devido ao potencial impacto nas contas federais. Trocar um ativo financeiro (prestações da dívida dos estados com a União) por um não financeiro (ações de empresa estatal) piora a dívida líquida, o que tem impacto negativo sobre o resultado primário e, consequentemente, a meta fiscal.

Apesar disso, a decisão política foi sancionar o dispositivo para evitar atritos com o Congresso Nacional, em especial com figuras influentes no Senado. Críticos da decisão, porém, afirmam que o governo não calculou os riscos jurídicos de tal decisão.

A avaliação é que, além da possibilidade de o STF obrigar a União a aceitar os ativos, as condições dessa transação também podem se tornar alvo de litígio. Casos similares se arrastam há anos no Judiciário.

No fim dos anos 1990, em meio à renegociação de dívidas dos estados, a União federalizou companhias estaduais de energia para posterior privatização. Os estados seriam remunerados de acordo com o valor da venda. Em dois casos, porém, o leilão não teve interessados: Ceal (Companhia Energética de Alagoas) e Cepisa (Companhia Energética do Piauí).

Nos anos seguintes, as duas empresas continuaram sob a responsabilidade da União, por meio da Eletrobras, período em que perderam capacidade de investimento e acumularam dívidas devido à operação deficitária, o que afetou seu valor de mercado. O governo federal só conseguiu privatizá-las em 2018, por um valor simbólico de R$ 50 mil cada uma.

Os estados de Alagoas e Piauí acionaram o STF pedindo reparação à União, cuja demora na privatização, na visão deles, levou à desvalorização do ativo e ao prejuízo dos estados.

Técnicos do governo veem risco de disputas semelhantes no futuro, caso a União seja obrigada a efetivar novas federalizações de empresas estatais estaduais.

Em entrevista coletiva na semana passada, o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, disse que “a União não tem interesse nenhum em ganhar R$ 1 a mais por esses ativos do que o valor justo, assim como também é nosso dever não receber esses ativos por R$ 1 a menos do que seja seu valor justo”.

No entanto, poucos acreditam que estado e União possam chegar a um consenso em torno do valor das companhias, o que abriria brechas para disputas judiciais -sobretudo se houver cláusula semelhante à dos anos 1990, com incorporação da empresa mediante adiantamento e posterior compensação da diferença a partir do valor obtido na privatização.