SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A rede World oferece cerca de R$ 700 ao longo de um ano para quem escanear a íris e criar uma identidade digital, mas o processo é irreversível. Mais de 400 mil brasileiros já aderiram ao projeto patrocinado por Sam Altman (o executivo por trás do ChatGPT) em troca do pagamento em criptomoedas.

A iniciativa, sob a responsabilidade da empresa Tools for Humanity (TfH), cria um código numérico a partir da biometria ocular. Esse número fica gravado em um sistema de blockchain, em que há um embaralhamento das informações. Para resgatar o dado original, os computadores precisam montar uma espécie de quebra-cabeças, que precisa estar com todas as peças íntegras —ou seja, nenhuma informação pode ser apagada.

A impossibilidade de excluir dados pessoais viola o direito à revogação do consentimento previsto na lei europeia de privacidade (e também na Lei Geral de Proteção de Dados, LGPD). Essa foi a principal alegação para a autoridade alemã dar, em 19 de dezembro, um veredito contrário à tecnologia, após 20 meses de análise sobre se o protocolo de coleta de dados da íris era seguro para a privacidade dos cidadãos europeus.

A decisão foi coordenada entre todas as autoridades de proteção de dados europeias. Porém, a decisão de proibir as atividades da rede World cabe a cada jurisdição. A TfH recorreu contra a decisão e continua operando em Áustria e Polônia. A empresa está banida em Portugal e Espanha.

No Brasil, a ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) também investiga a atuação da rede World desde novembro, mas ainda não decidiu sobre o mérito. Segundo a autarquia, os dados biométricos são especialmente sensíveis por causa de sua natureza única e permanente. Por isso, não podem ser alterados como uma senha alfanumérica.

Em nota enviada à Folha, a TfH afirma que anonimiza todos os dados com um método de criptografia avançada. “Os novos códigos de íris são fracionados por meio de uma técnica conhecida como Computação Multipartidária Anonimizada (AMPC). Esses fragmentos não revelam informações sobre o indivíduo e são armazenados em bancos de dados operados por terceiros confiáveis, como a Universidade Friedrich Alexander Erlangen-Nürnberg, na Alemanha.”

A empresa diz, ainda, que quer contribuir com reguladores para definir o que são “dados anonimizados”. O objetivo da rede World é, segundo a TfH, viabilizar a identificação de um ser humano sem a necessidade de compartilhar mais dados. De acordo com um documento técnico da companhia, a AMPC garante “sigilo perfeito”.

O professor da Escola Politécnica da USP Marcos Barreto fala que é inviável falar em criptografia inviolável. “A História mostra que o avanço dos computadores permite superar os desafios criados pela criptografia”, afirma.

Uma das preocupações geradas pelo avanço da computação quântica, por exemplo, seria a possível inutilização dos atuais sistemas criptográficos, considerando que as novas máquinas representariam um grande salto em capacidades de cálculo.

Segundo a TfH, o sistema usado no World App, por ser aberto, recebe auditoria de diversos especialistas. Assim, a tecnologia estaria em constante evolução.

“E, se o sistema for desativado, quem fará essa manutenção?”, questiona Barreto.

A empresa ainda argumenta que as imagens da íris, coletadas em um computador esférico batizado de orb, são criptografadas e ficam armazenadas apenas no celular do usuário junto a uma chave criptográfica individual.

A TfH ainda pode acessar os dados no celular, desde que o aplicativo esteja baixado e tenha permissões para editar pastas e arquivos, recorda Marcos Simplício, também professor da Escola Politécnica da USP.

Para receber as 48,5 criptomoedas chamadas de Worldcoin, cotadas a R$ 11,85 cada, a pessoa deve manter o World App instalado por um ano.

Ainda há pessoas que pretendem manter o aplicativo à espera de que o ativo virtual se valorize. É o caso do consultor de consórcios Tárcio Roberto, 36, que escaneou as íris no último dia 13, em um estande no bairro de Pinheiros.

Segundo dados da TfH, 1 milhão de brasileiros já baixaram o aplicativo. Porém, 600 mil ainda não foram a um orb fazer o registro.

De acordo com Simplício, o acesso às imagens da biometria ocular vale mais do que o código gerado a partir de coordenadas de referência da íris, uma vez que uma mínima mudança no ângulo da fotografia alteraria o resultado. “Se eu tenho a forma original, eu dou uma girada nela, e a ordenação fica correta e o dado pode ser usado para identificação”, afirma.

O uso da íris, além da precisão maior em relação a outros dados biométricos, garantiria mais privacidade, afirma o documento da TfH. “Não há grandes registros públicos de íris, como existem de rostos nas redes sociais, e ninguém pode fotografar os olhos de alguém tão de perto sem ser notado.”

Barreto afirma que o mercado de prova de identidade rende fortunas ao menos desde o império romano. “É o que os cartórios fazem a autenticar a firma de uma pessoa em um documento”, exemplifica.

Para a tecnologia ser usada como um serviço público, por exemplo, a rede World teria de coletar dados de grande parte de uma população nacional, avaliam os especialistas consultados. Esse seria um desafio grande até para estados. “Até hoje, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) não conseguiu coletar as digitais em todo o Brasil”, diz Barreto.

Além da preocupação em relação ao direito de exclusão de dados pessoais, a autoridade alemã de proteção de dados também determinou que a TfH deveria pedir consentimento para tratamento de dados em todas as etapas do processo. A prática daria mais transparência à atividade da empresa.

O primeiro laudo publicado pelos alemães ainda não trata de uma preocupação citada pela ANPD: o tratamento de dados de menores de idade, cujo uso deve ser justificado. A TfH afirma que pede documento com foto para a criação da World ID.