SÃO CARLOS, SC (FOLHAPRESS) – Membros da linhagem humana já tinham se adaptado com sucesso à vida em ambientes desérticos há cerca de 1 milhão de anos, argumenta uma equipe internacional de pesquisadores. De acordo com eles, a espécie Homo erectus parece ter se virado bastante bem numa região da Tanzânia (África Oriental) que, nessa época, tinha características semelhantes às das beiradas do Saara ou da Arábia Saudita de hoje.
A conclusão vem de uma análise detalhada do contexto ambiental e da cronologia de Engaji Nanyori, sítio tanzaniano já conhecido pela presença de hominínios (membros do grupo dos ancestrais mais próximos da humanidade) com mais ou menos essa idade.
O período estudado pela equipe engloba a chamada transição do Pleistoceno Médio (entre 1,2 milhão de anos e 800 mil anos atrás), fase que, naquela região africana, representou um aumento considerável da aridez e o encolhimento de habitats mais favoráveis, como matas de galeria e savanas.
Os cientistas, liderados por Julio Mercader, do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Universidade de Calgary (Canadá), criticam a ideia de que, na nossa linhagem, a adaptação à vida em ambientes considerados particularmente desafiadores, como os desertos e as florestas equatoriais, só teria se tornado possível com o surgimento dos seres humanos anatomicamente modernos, ou Homo sapiens.
De fato, antes do surgimento da nossa espécie, com seu alcance global, o Homo erectus já havia operado uma expansão para além do berço africano dos hominínios. Há vestígios dele na Europa, no Cáucaso, na China e no Sudeste Asiático, o que indica considerável adaptabilidade.
No entanto, para outros pesquisadores, o avanço do H. erectus pelo Velho Mundo só teria acontecido porque ele conseguiu “acompanhar” a expansão concomitante de ambientes de savana não muito diferentes dos que já conhecia na África.
Segundo Mercader e seus colegas, o sítio de Engaji Nanyori e regiões vizinhas da chamada garganta de Oldupai, uma das mais ricas fontes de fósseis e artefatos de hominínios do mundo, desafiam essa lógica.
O primeiro indício de que a área tinha passado por um processo de desertificação é a presença de grandes quantidades de pólen de plantas do gênero Ephedra. Essa gimnosperma (membro do mesmo grupo ao qual pertencem os pinheiros) é uma planta arbustiva que ocorre apenas em terrenos arenosos, e o pólen identificado pela equipe é a primeira ocorrência dela numa região equatorial, como a Tanzânia.
Outros indícios paleoambientais de que a secura estava predominando na região há 1 milhão de anos incluem a formação de solos muito ácidos ou muito alcalinos (o que sugere a intensa evaporação da água em margens de rios e lagos, concentrando sais minerais na terra) e sinais de incêndios frequentes e de larga escala, o que indica concentração de vegetação seca e, portanto, muito inflamável.
E como os Homo erectus da região estavam se virando diante desse ambiente cada vez mais ressequido? Ao que parece, muito bem, obrigado.
Datações mais precisas dos fósseis de H. erectus apresentadas por Mercader e seus colegas indicam que a espécie de hominínio estava ocupando Engaji Nanyori e a garganta de Oldupai exatamente na fase em que as condições áridas já estavam bem estabelecidas, produzindo grande quantidade de ferramentas de pedra simples, porém diversificadas e eficientes.
E tudo indica que tais instrumentos estavam sendo usados para capturar e retalhar presas algumas poucas espécies de antílopes que conseguiam sobreviver na região ressecada. Tanto os artefatos quanto os ossos dos animais se concentram em locais em que havia rios e laguinhos temporários, mostrando que os hominínios tinham uma espécie de mapa mental da região e concentravam suas atividades onde havia disponibilidade de água.
Segundo os pesquisadores, os dados sugerem a existência de uma estratégia de “seleção flexível de habitats” e mostram as bases de uma maior adaptabilidade que tornaria os ancestrais da humanidade ainda mais capazes de se espalhar pelo planeta durante o Pleistoceno Médio.
O trabalho acaba de sair na revista científica Communications Earth & Environment.