BALÉM, PA (FOLHAPRESS) – Uma empresa credenciada para certificar o manejo de madeira em áreas de floresta e para validar a geração de créditos de biodiversidade -semelhantes aos créditos de carbono- tem entre os sócios o dono de uma madeireira denunciada pelo MPF (Ministério Público Federal) e multada por três órgãos ambientais federais em razão de supostas ilegalidades com toras extraídas na amazônia.

Uma certificação serve para atestar que a exploração madeireira ocorre, em tese, de forma responsável e sustentável, com a garantia de um selo que funciona como aval à atividade. No caso dos créditos de biodiversidade, o certificado indica que um projeto tem condições de vender créditos ao mercado a partir da preservação da floresta.

Uma das empresas que fazem essa certificação, porém, tem no quadro societário um empreendimento que atua na exploração de madeira e com irregularidades apontadas por MPF, Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e SFB (Serviço Florestal Brasileiro).

A certificadora é a Neocert, sediada em Piracicaba (SP). Ela é credenciada pelo FSC (Forest Stewardship Council, na sigla em inglês), o selo internacional mais conhecido para indicar boa procedência e correção de um plano de manejo de madeira em áreas de floresta.

No caso dos créditos de biodiversidade, os projetos validados pela Neocert são aceitos pelo Instituto Life, que atua no desenvolvimento de normas de certificação, no credenciamento de certificadores e na sistematização e divulgação de projetos do tipo.

Entre os sócios da Neocert, está a TMNH Participações, com sede em Belém. Os diretores da TMNH são Renato e Ricardo Batista Tamanho.

Diversos empreendimentos na área de sustentabilidade, que atuam com projetos nesse setor, estão ligados à TMNH. Há ainda uma madeireira, a Samise Indústria, Comércio e Exportação, que tem Ricardo Tamanho como sócio. Os supostos crimes e infrações ambientais foram imputadas a essa madeireira.

Em nota, a Neocert afirmou que a TMNH é uma das investidoras da empresa, mas não participa da “gestão operacional” ou das decisões relacionadas às certificações. “Os demais sócios e colaboradores da Neocert não possuem relação com a Samise”, disse.

A defesa da Samise, em nota, afirmou que aguarda o cumprimento do devido processo legal pela administração pública e pela Justiça, após apresentação da defesa e de contestações em relação às multas aplicadas. “A Samise ou qualquer de seus sócios não podem ser considerados como infratores e/ou culpados por apenas responderem a processos administrativos e judiciais.”

A madeireira atua em uma concessão florestal -por meio de um contrato de 2014- na Flona (Floresta Nacional) de Saracá-Taquera, no noroeste do Pará. A Flona tem 429,6 mil hectares de floresta amazônica e está situada nos municípios de Oriximiná, Faro e Terra Santa.

As concessões florestais, a cargo do SFB, permitem a retirada de madeira, óleo, sementes e resinas, desde que critérios de sustentabilidade sejam respeitados e mediante pagamentos ao governo federal, geração de empregos e investimento nas comunidades locais.

A Samise, a madeireira que tem um sócio em comum com a certificadora que dá aval a manejo florestal e a créditos de biodiversidade, ficou inadimplente na execução do contrato da concessão na Flona de Saracá-Taquera. Em novembro de 2022, o valor da dívida foi calculado em R$ 1,58 milhão.

Por descumprimento de cláusulas, o SFB -vinculado ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima- determinou a suspensão do contrato, em agosto de 2023, com proibição de corte de árvores, transporte de toras e abertura de novos pátios florestais. Em outubro, o órgão aplicou uma multa de R$ 367,9 mil à Samise.

No mesmo mês da suspensão do contrato, o Ibama multou a Samise em R$ 4,99 milhões, por execução de manejo florestal sem autorização prévia por órgão ambiental.

A empresa também foi multada pelo ICMBio, responsável pela gestão e fiscalização de unidades federais de conservação.

Uma multa, no valor de R$ 919,2 mil, foi aplicada em razão do armazenamento de 1.532 m3 de madeira amazônica para posterior transporte, sem a devida autorização ambiental, conforme o ICMBio. A outra autuação se deveu a estoque de toras e madeira serrada, num total de 62,5 m3, também sem licença.

Nos dois casos, as supostas infrações ambientais ocorreram na Flona de Saracá-Taquera e envolveram espécies nativas da amazônia. A multa maior foi lavrada em setembro de 2023. A menor, em maio do mesmo ano.

A partir do encaminhamento feito pelo ICMBio, o MPF no Pará denunciou a Samise à Justiça Federal.

“Restou evidenciado que a denunciada causou danos ao meio ambiente, abrangido pelo bioma amazônico, objeto de especial preservação, por ter mantido em guarda, para fins comerciais, madeira, sem licença outorgada pela autoridade competente”, cita uma das denúncias. A ação penal tramita na Justiça Federal desde novembro de 2023.

Uma primeira ação foi movida na Justiça pelo MPF, em agosto do mesmo ano. O crime apontado é o mesmo: recepção ou aquisição de madeira, para fins comerciais, sem licença.

A defesa da Samise, feita pelo advogado Daniél Sena, disse que vai provar a inocência da empresa e o “equívoco” das acusações. “Quanto aos atrasos nos pagamentos junto ao SFB, já existe tratativa administrativa interna para a sua composição no contrato de concessão em vigor.”

Segundo a empresa, o que ocorreu em 2023 foi uma “exceção pontual ao seu histórico de boas práticas de manejo da floresta”. Samise e Neocert “são negócios totalmente independentes”, disse o advogado da madeireira.

Em nota, o FSC Brasil disse não haver registro de denúncias ou histórico de conflitos relacionados a Neocert e Samise. “Caso sejam identificadas eventuais lacunas nos requisitos estabelecidos, o FSC seguirá os processos normativos e tomará as medidas cabíveis e necessárias.”

A Neocert permanece credenciada para conduzir auditorias em projetos de biodiversidade, disse o Instituto Life, em nota. “As ações penais não se referem à certificadora habilitada pelo Life. As habilitações têm como escopo o CNPJ da organização avaliada, seguindo normas internacionais.”

Reportagens publicadas pela Folha em 10 e 22 de dezembro mostraram que a certificação para oferta de créditos de biodiversidade na amazônia ocorreu apesar da existência de multas por desmatamento ilegal numa fazenda destinada à geração dos créditos, no Amazonas, e apesar da ocorrência de conflitos fundiários -inclusive com suspeita de coação- em seringal no Acre.

A certificação foi feita pela Neocert e validada pelo Instituto Life. Após as reportagens, pelo menos uma certificação foi suspensa, outras passam por revisões e avaliações das suspeitas existentes e os sete projetos de créditos de biodiversidade na amazônia foram excluídos do banco público de informações mantido pelo instituto, em razão das “denúncias recebidas”, conforme o Life.