SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em seus seminários, o psicanalista francês Jacques Lacan elaborou o neologismo “amódio” para mostrar como o amor está unido ao ódio na estrutura do inconsciente humano. O enamoramento, segundo o autor, não se manifesta como uma oposição ao desprezo, mas à indiferença.
Do mesmo modo, a paixão, num sentido abrangente do termo, seria marcada por uma pureza indelével ao conciliar afetos conflitantes. A peça “Visitando o Sr. Green”, que estreia sábado (18) no Teatro Renaissance, aborda as contradições de um amor pouco representado, a amizade formada por dois homens de gerações diferentes, um jovem e outro mais velho.
Em geral, são relações construídas sob o signo da admiração, podendo replicar traços da paternidade. Incluem ainda interdições, sobretudo o afastamento causado pela morte do amigo vivo há mais tempo.
“O esforço de se comunicar com o outro é um ato de amor para unir as pessoas, mesmo diante dos preconceitos”, diz o ator Johnny Massaro, 32, que volta aos palcos depois de cinco anos. “O audiovisual não é necessariamente mais sedutor. Nada se compara ao risco e à fluidez que o teatro oferece. Fiquei até enferrujadinho nesse tempo.”
Ele contracena com Elias Andreato, 69, que dirigiu a primeira montagem da peça no Brasil, há quase três décadas, com Paulo Autran no elenco. “A vida privada dele nunca era exposta, não se falava de sexualidade. Paulo interpretava um velho rabugento. O texto ficou mais político, porque o preconceito está mais cruel hoje, com todo mundo exposto na rede”, afirma Andreato.
Encenada em 50 países, a dramaturgia escrita pelo americano Jeff Baron se motiva por um acidente de trânsito, em que o empresário Ross, papel de Massaro, atropela Sr. Green, judeu ortodoxo vivido por Andreato. O ocorrido entre os dois é levado aos tribunais.
A juíza decide, então, que Ross deverá prestar serviços comunitários, visitando Sr. Green toda semana. “O que um assassino está fazendo no meu apartamento?”, pergunta a vítima, logo no início da peça. Pouco a pouco, ele se afeiçoa ao jovem neurótico, que se interessa em tomar algumas lições sobre a vida.
Até que Ross revela ser gay e judeu, uma afronta ao moralismo de Sr. Green, advindos de uma leitura ortodoxa da Torá. Desse modo, a cumplicidade entre os amigos é abalada por um choque entre duas visões de mundo distintas.
A dramaturgia se distingue por essa plasticidade dos sentimentos evocados, uma montanha-russa para os atores, que brigam e se acariciam, num átimo. Morando na Ilha de Manhattan, Baron, o autor, constrói suas personagens se inspirando em tipos que encontra. “Visitando o Sr. Green” parece um conto de Nova York, o que não afasta as plateias ao redor do mundo. Cenário de tantos roteiros, a cidade é o lugar-comum para o desenrolar de uma história. Baron é autor de outras peças, como “Dia dos Pais”, além de romances e de seriados.
O diretor da montagem, Guilherme Piva, afirma que os atores têm estilos diferentes. Enquanto Massaro opera intervenções no presente, Andreato desenvolve, pouco a pouco, seu personagem. As contradições da ficção se estendem à vida real, uma vez que os artistas estão em momentos bem distintos da carreira.
O início dos ensaios, por exemplo, teve de ser adiado porque Massaro viajou até uma praia em Curimãs, no interior do Ceará, para protagonizar as cenas eróticas do clipe de “Numa Ilha”, lançamento da cantora Marina Sena, de quem é fã.
As imagens viralizaram na internet, que não deu sossego a Massaro. Ele rememora a gravação, sem sublimar seu desejo. “Sonhei com ela dois dias antes de fazer o clipe, mas o que você quer dizer com excitado? Pinto duro? Pinto duro exatamente não, porque ali na hora não dá, né gente”, diz ele.
Massaro percorreu uma trajetória singular até aqui. Na TV Globo, surgiu como o nerd da novela “Malhação”, se notabilizou na minissérie “Amorteamo” e se tornou sex symbol, interpretando Giotto, em “Verdades Secretas 2”. O assédio só aumentou, quando se descobriu gay, logo após atuar no filme “Primeiros Soldados”, sobre a Aids.
Ele diz não se incomodar com a atenção dada à sua forma física e recusa qualquer deslumbramento com o estrelato. “Encaro tudo isso como algo transitório. Eu sei que, em algum momento, serei outra coisa aos olhos do público. Mas, agora, é excelente, vou surfar nessa onda enquanto ela existir.” Apesar das diferenças, é nítida a admiração de Massaro por Andreato. Os dois brincam e se abraçam o tempo todo, entre uma cena e outra, nos ensaios.
Massaro reconhece que o mercado de atores tem sido etarista na escolha dos elencos. “A luta contra o tempo é perdida. Eu me recuso a atrelar o auge à juventude”, diz. Ao mesmo tempo, busca entender a nova dinâmica da indústria, fragmentada entre contratos temporários na TV, o universo do streaming e o próprio teatro. Nesse cenário, os artistas jovens tendem a usar as redes sociais como vitrine para o trabalho. “Eu não sou ninguém para julgar alguém que está no BBB ou no TikTok. Dá muito trabalho, tento entender quem é o meu eu virtual.”
Nem havia internet quando Andreato iniciou a carreira. Na juventude, o paranaense de Rolândia era hippie e tinha o apelido de Caetaninho por causa da cabeleira. Ele entrou tarde em um teatro, aos 17 anos, quando viu Maria Bethânia no espetáculo “Rosa dos Ventos”, com direção de Fauzi Arap. Apaixonado por Bethânia, Andreato intuiu ali que seu lugar seria no palco. Também firmou uma amizade com Arap, seu mestre, de quem herdou todo o acervo.
“O processo com Fauzi era árduo. Ele não tinha paciência com os artistas. Eu aprendi com ele a roteirizar as dramaturgias e buscar uma delicadeza no trabalho”, diz Andreato, que também é diretor. Décadas mais tarde, ele trabalharia com a sua musa, no recital “Bethânia e As Palavras”.
Entre as peças históricas que trabalhou, na década de 1970, estão a montagem de Renato Borghi para “Os Pequenos Burgueses”, de Máximo Górki, e a segunda temporada de “Calabar”, de Chico Buarque e Ruy Guerra, depois de ser censurada pelo regime militar.
Atualmente, o ator é considerado um dos homens de teatro mais importantes da geração pós-Oficina. Sua história com a companhia é, no entanto, tortuosa. Como José Celso Martinez Corrêa estava exilado, Andreato afirma ter entrado em contato com a versão dada por Borghi de sua briga com o líder do grupo, morto em 2023.
Ao voltar ao país, Zé Celso se aproximou de Andreato por um breve período. “Eu virei ídolo do Zé Celso por seis meses. Até que fui dirigir a Maria Alice Vergueiro num show e fomos ensaiar no Oficina. Só que eu não deixei o Zé Celso ver, aí foi a morte”, lembra Andreato. “Não vem querer botar o pau na minha cara, sentado na plateia. Eu brincava com ele que preferia escolher os meus parceiros.”