SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um homem poderoso oferece carne humana para seus visitantes, sem saber que Zeus, o mais temido dos deuses, está entre eles. Punido pela perversão, é transformado em um ser digno de sua natureza. Embora não se saiba a origem exata, muitos acreditam que o rei Licaão foi o primeiro lobisomem, em plena Grécia antiga.
Elo perdido entre o humano e os instintos animalescos de um lobo, a criatura volta nesta quinta-feira (16) aos cinemas após ganhar o mundo como uma das figuras mais temidas, tanto do folclore europeu como das superstições do Brasil interiorano.
Adotado pela Universal Pictures na época em que monstros refletiam os traumas de duas guerras mundiais em 1941, os pelos e garras de Lon Chaney Jr. lembravam a desumanização de judeus perante o nazismo, o lobisomem manteve seus conflitos internos em diversas interpretações. E hoje, nas mãos de Leigh Whannell, surge como um representante dos medos deixados pela pandemia.
“O monstro de uma pessoa pode ser o herói de outra hoje em dia. O que preserva os monstros clássicos é que parece não haver ambiguidade. Você os identifica facilmente como forças do mal. Mas eles são complexos. Para mim, o lobisomem escondia uma história de tragédia”, afirma o diretor do novo “Lobisomem”.
Ele acredita que figuras como o Drácula que não por acaso recebeu nova roupagem este ano em “Nosferatu” e a besta em questão podem funcionar em qualquer período ou contexto.
É também o retorno de Whannell aos monstros da Universal. Se em “O Homem Invisível”, de 2020, o cineasta transformou as ambições de um cientista maquiavélico em fábula assustadora sobre relacionamentos abusivos, dessa vez escolhe a licantropia para abordar heranças parentais e as fragilidades de nossa espécie.
O longa acompanha o escritor Blake, papel de Christopher Abbott, um homem perseguido pela infância no interior americano que tenta manter a relação com sua esposa, a jornalista Charlotte, personagem de Julia Garner.
Quando a morte do pai o obriga a visitar o lugar onde cresceu, ele encontra na viagem uma maneira de fortalecer a conexão entre os dois e com a filha Ginger. O trio logo se vê preso em uma casa rodeada por uma terrível ameaça, dividida entre o animal e o humano.
Escrito a quatro mãos pelo cineasta e sua mulher, Corbett Tuck, o roteiro ganhou seu primeiro rascunho durante a quarentena da Covid-19. A iminência dos problemas de saúde, as cobranças nos cuidados com os filhos e o pavor de sequer abrir a porta alimentaram o projeto.
Ainda que o mal pareça estar lá fora, Blake passa a apresentar sintomas que afetam suas impressões de Charlotte e Ginger e a comunicação com elas. Segundo Whannell, Abbott estudou alguns distúrbios para compor seu papel e se inspirou no caso de um familiar, vítima de um problema temido por todos a perda da memória para o Alzheimer.
“Quando alguém enfrenta uma doença degenerativa, o corpo começa a falhar. Nós preservamos uma relação arcaica com ele, um tipo de luta constante para preservá-lo. Lutamos contra a própria pressão sanguínea e contra a saúde dos nossos corações. O corpo pode se tornar o nosso pior inimigo”, afirma o cineasta.
As mudanças físicas determinam uma nova natureza e o protagonista tenta controlar seus instintos a qualquer custo. Mas se a obsessão por transformações cada vez mais convincentes dominou a trajetória do lobisomem nas telonas em “Um Lobisomem Americano em Londres”, por exemplo, os efeitos práticos do maquiador Rick Baker lhe renderam um Oscar e são referenciados até hoje, aqui a metamorfose se dá em um jogo entre perspectivas.
Olhares horrorizados de mãe e filha denunciam alterações que o próprio infectado é incapaz de perceber. Palavras se tornam incompreensíveis ao monstro enquanto seus ouvidos amplificam o escalar de uma aranha pela parede. Se a escuridão da noite perturba Charlotte, Blake e sua visão noturna descobrem nela uma eficiente ferramenta para predadores.
São vítimas de um mesmo mal, aprisionados em uma mesma casa, mas contaminadas de modos completamente diferentes.
“Blake está desaparecendo, deixando de ser ele mesmo. Durante as preparações, eu tentava incorporar as sete etapas do luto em apenas uma noite. Se Blake está lidando com as etapas físicas desse processo, Charlotte precisa lidar com as etapas psicológicas”, diz Garner.
A atriz pensa que a maternidade pode ser vista como um tipo de contágio, e que o desespero dos pais pode ser facilmente transmitido para qualquer criança.
“Lobisomem” propõe que o espectador se divida entre a percepção do contaminado e a de seus entes próximos. O filme não tenta superar o visual de versões anteriores e prioriza o elo entre o público e as personagens.
Esse humanismo não impede Whannel de resgatar alguns dos truques que sempre o encantaram no cinema de terror. Roteirista de diversos filmes da saga “Jogos Mortais”, ele retorna ao grotesco com dentes e unhas que caem aos montes, braços dilacerados e litros de sangue falso, enquanto os “jumpscares” não minimizam em nada os dramas humanos.
Defensor apaixonado do terror, o cineasta acredita que o gênero ainda enfrenta muitos preconceitos no cinema. “Muitos diretores evitam o próprio termo. ‘O meu filme não é de terror, ele é um filme sobre uma família, é um suspense psicológico’. São capazes de fazer de tudo para evitar essa palavrinha suja. Não acho que precisamos abrir mão do entretenimento para produzir bons filmes de terror.”
Lobisomem
Quando Estreia nesta quinta nos cinemas (16)
Classificação 16 anos
Elenco Christopher Abbott, Julia Garner e Matilda Firth
Produção Estados Unidos, 2025
Direção Leigh Whannell