PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Paiva. Para os franceses, é apenas um sobrenome de origem estrangeira no painel do interfone de um prédio na região de Montmartre, no norte de Paris. Em um dos apartamentos, com vista para a basílica de Sacré-Coeur, mora uma personagem da história que a França está prestes a conhecer, a do filme “Ainda Estou Aqui”. Com o nome de “Je Suis Toujours Là”, o longa estreia nesta quarta-feira (15) em 200 salas de todo o país.
Ana Lúcia Paiva, a Nalu, 67, consultora de uma empresa de tecnologia, mora há mais de 30 anos na França, onde foi estudar matemática e acabou se radicando. É uma das cinco filhas de Eunice e Rubens Paiva, o casal de protagonistas do filme, interpretados por Fernanda Torres e Selton Mello.
Rubens Paiva foi preso, torturado e morto pela ditadura em 1971. O filme retrata a luta de Eunice para esclarecer seu desaparecimento.
Indiretamente, é por causa de Nalu que “Ainda Estou Aqui” existe. Foi ela que levou Walter Salles, então aluno do liceu francês do Rio de Janeiro, à casa dos Paiva no Leblon, reconstituída no filme. “Ele era namorado de uma amiga minha. O Waltinho disse para o meu irmão Marcelo: ‘A culpa pelo filme é sua e da Nalu.'”
O livro “Ainda Estou Aqui”, publicado em 2015 por Marcelo Rubens Paiva, e as lembranças da amizade de adolescência com os Paiva serviram de inspiração para Salles. O diretor passou várias horas na sala do apartamento parisiense de Nalu entrevistando-a para o roteiro. “Foi muito emocionante, dois amiguinhos de 13 anos de idade se revendo.”
No filme, ela conta, é autêntica a cena em que vai ao quarto do pai pedir uma camisa, na hora em que Rubens está se vestindo para ser levado por seus algozes a última vez que o viu. “Tinha uns homens no quarto, mas sempre tinha gente em casa, então não notei nada de errado”, lembra.
Nalu se emociona ao falar do filme e da história familiar. Rasga elogios ao ator Selton Mello, que vive Rubens. “Eu e o Marcelo ficamos mais impressionados com ele do que com a Fernanda. É muito meu pai, foi uma coisa linda para meus filhos, que viram o avô de que ouvem falar desde que nasceram.”
Ela conta que a ficha da morte de Rubens Paiva só caiu em 1975, durante uma missa em homenagem a outra vítima da ditadura, Vladimir Herzog. “Dom Paulo [Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo] me disse: ‘Esta missa também é para seu pai.'” Em 1986, Nalu chorou sozinha em um banheiro, ao ler uma reportagem da revista Veja revelando detalhes sobre o caso.
Em seu apartamento parisiense, Nalu mostra lembranças da época apresentada no filme: um quadro de Clóvis Graciano que decorava a sala da casa no Leblon, receitas culinárias da mãe, um cartão postal enviado pelo pai, que, bonachão, a chamava de “Lambancinha” ”Porque eu reclamava de tudo, fazia lambança, digamos assim”, segundo ela.
“Lambancinha, papai ficará muito triste se você não passar de ano! É preciso trabalhar mais e brincar um pouquinho menos! Tá bom?”, escreveu Rubens à filha em cartão enviado de Paris em agosto de 1964.
Nalu participou de pré-estreias do longa em cidades francesas, como Paris, Lyon e Nantes. Em setembro, durante o Festival de Veneza, na Itália, foi abordada por uma jovem envergonhada, que disse: “Eu também moro em Paris, queria te conhecer”. Era Bárbara Luz, 22, a atriz que interpreta a própria Nalu no filme. Filha de atores do grupo de teatro Galpão, faz faculdade de teatro na Sorbonne há um ano e meio.
Bárbara e Nalu ficaram amigas e têm ido juntas ao teatro. “Ela me disse que se sentiu representada, que ela era toda alegrinha como no filme, quando era mais nova, e ainda é”, conta a atriz, que conseguiu o papel depois de testes.
As duas devem assistir a uma das sessões de estreia de “Ainda Estou Aqui” na capital francesa. A França é a segunda pátria do filme, coprodução franco-brasileira. Trata-se da primeira parceria de Walter Salles Jr. com a produtora francesa Mact desde, coincidência ou não, “Central do Brasil”, de 1998, filme mais premiado do diretor.
“Acho que ‘Central’ é o melhor filme que a Mact já tinha produzido”, diz o coprodutor francês do filme, Thierry de Clermont-Tonnerre, filho do casal de franceses fundadores da Mact, Antoine e Martine. “É bastante emocionante, porque nós somos, como disse o Walter, entre aspas, a família do cinema francês, e ‘Ainda Estou Aqui’ é um filme sobre a família”, diz.
Segundo o produtor, cerca de 12% do orçamento de “Ainda Estou Aqui” é francês. O contrato prevê que o filme seja exibido ainda este ano na televisão, pelo Canal Plus, notório mecenas do cinema europeu.
Salles passou vários meses de 2024 em Paris, cuidando da edição sonora do filme com o compositor Warren Ellis, 59, mais conhecido como um dos parceiros musicais do lendário Nick Cave, australiano como ele.
No final do ano passado, o diretor brasileiro retornou a Paris para promover o filme em entrevistas. Nelas, defendeu punição aos militares que cometeram crimes na ditadura e foram anistiados por uma lei de 1979.
As resenhas francesas são fortemente elogiosas. A revista Télérama deu ao filme a nota “Très Bien”, muito bem em francês, a segunda maior de uma escala de cinco.