LEONARDO SANCHEZ

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Antes mesmo das primeiras imagens de “Babygirl” aparecerem na tela, os gemidos de Nicole Kidman invadem o escuro do cinema. Sentada em Antonio Banderas, ela atinge o que pensamos ser o clímax, num grito intenso e libertador. Eles se beijam e ela corre para o quarto ao lado, onde se masturba assistindo a um vídeo pornô que borra as linhas entre consentimento e estupro.

Ela tem fetiche em ser controlada, humilhada, dominada. Ele prefere o bom e velho papai e mamãe. Ambos se amam, são companheiros e têm uma vida feliz, mas há um impasse que cria um abismo entre os dois lados da cama. Ela sabe que jamais estará saciada com o marido, mas ele nem desconfia disso.

Em “Babygirl”, Kidman assume um dos papéis mais poderosos e arriscados de sua carreira. Aos 57 anos, ela tira a roupa em inúmeras cenas de sexo, fica completamente vulnerável e entrega o que muitos críticos têm chamado de seu melhor trabalho em anos.

É seguro dizer, aliás, que ela era a favorita ao Globo de Ouro de melhor atriz em filme de drama, no último domingo, depois de vencer a taça Volpi de atuação no Festival de Veneza. Mesmo passada para trás por Fernanda Torres, porém, Kidman continua sendo um dos grandes obstáculos para a indicação da brasileira ao Oscar.

“Este filme é uma odisseia emocional e sexual”, diz a atriz em conversa virtual com jornalistas. “E a minha personagem, Romy, é uma mulher em crise. Ela conquistou muita coisa, mas ainda está em conflito em relação ao que deseja. Ela tem poder para fazer o que quer, mas ela está sendo verdadeira com ela mesma?”

Romy é a fundadora e CEO de uma empresa de tecnologia de Nova York. Elegantérrima, ela caminha segura de si pelo escritório logo cedo, é a última a sair e, por essas e outras, ganhou o respeito e admiração de todos ao redor –por mais que alguns homens tentem, sem sucesso, diminuí-la com seu machismo.

Quando um estagiário 30 anos mais novo, vivido por Harris Dickinson, chega à empresa, eles sentem uma atração instantânea. Nas palavras de Kidman, é como se Romy e Samuel estabelecessem uma conexão estranhamente visceral, que não tem a ver com intelecto ou idade, mas com química.

Ele começa fazendo comentários rudes e dando ordens a ela, o que a enche de libido. Logo, a relação escala para escapadas sexuais em hotéis e no próprio escritório. “A maneira como o poder se move ao longo da trama, como é algo sempre em jogo, me atraiu. Está tudo bem uma mulher poderosa dizer que não quer ser poderosa em alguns momentos”, diz a atriz.

Diretora e roteirista de “Babygirl”, a holandesa Halina Reijn diz que a ideia para o filme veio ao se questionar se é possível amarmos todas as partes de nós mesmos, até aquelas que nos envergonham. Romy, na trama, sabe que o que faz é errado, seja pela traição matrimonial ou pelo compliance empresarial, mas se doa completamente ao amante e ao masoquismo que reprimiu por anos.

O que se segue é uma sequência de cenas em que ela implora, chora, grita pelo sexo de Samuel, um personagem que, como ela, também está vulnerável, carente, traumatizado. “São como dois animais brincando, numa relação viciante e tóxica, mas que de certa forma também tem poder curativo”, diz Reijn.

A linha entre consentimento e assédio é tênue, o que não afastou Kidman do projeto. Ela, afinal, nunca foi uma atriz moralista, e construiu seu nome em Hollywood com versatilidade, vivendo, entre outras, uma cortesã em “Moulin Rouge: Amor em Vermelho” e uma mulher que confessa ao marido ter desejado fugir com outro homem, em “De Olhos Bem Fechados”, último filme de Stanley Kubrick.

No filme, ela deu ao cinema uma das imagens mais sexy de suas divas –seu corpo esguio recostado no batente da porta, coberto por uma lingerie translúcida e contornado pelas luzes impossivelmente azuis do banheiro ao fundo, enquanto ela confronta os delírios machistas do marido. “Você acha que o único motivo para qualquer homem falar comigo é porque ele quer me comer?”, questiona.

Reijn diz que “Babygirl” é justamente um tipo de resposta ao thriller erótico de Kubrick. E se a personagem de Kidman tivesse, de fato, fugido do marido? As ideias de monogamia e posse estão no centro das duas tramas, mas agora temos a chance de vê-las pela perspectiva feminina.

Assim, Kidman se junta a outras “lobas” que, na atual temporada de prêmios, vêm colecionando elogios com papéis que desafiam a conformidade patriarcal que rege nossa sociedade e sua própria indústria. São mulheres de meia-idade como Demi Moore, de “A Substância”, e Pamela Anderson, de “The Last Showgirl”.

Na cena que ela acredita ser a que define “Babygirl”, Romy e Samuel se encontram num motel e, por 12 horas, vivenciam todas as etapas de um relacionamento. Eles se apaixonam, exploram seus corpos, ficam envergonhados, transam, se entediam e rompem, tudo movido pelas vontades dela.

Enquanto transam, a relação da protagonista com o marido vai definhando, mas ela encontra certa forma de apoio nas filhas, mulheres como ela. Não é como se o casamento fosse infeliz, mas em determinada discussão entra a frustração que compartilha com muitas outras: “Eu nunca tive um orgasmo com você!”.

É possível estar num casamento feliz quando o clímax só é alcançado num dos lados? Ou quando desejos e paixões são suprimidos em prol do convívio matrimonial harmonioso? “Babygirl” faz estes e outros questionamentos, ao som de uma trilha sonora igualmente provocante, uma “cacofonia de sons”, nas palavras de Kidman.

Ao longo do filme, acordes musicais tímidos são costurados a gemidos, sussurros e arfadas pesadas, hipersexualizando ainda mais a vida de Romy, uma mulher que ao beirar os 60 anos tem a libido nas alturas, apesar de uma vida sexual ativa ser negada a muitas de sua geração, no imaginário popular.

“Nós tivemos um compositor genial [Cristobal Tapia de Veer, da trilha viral de ‘The White Lotus’], com um trabalho muito primitivo e espirituoso”, diz Reijn. “Era importante que o público entendesse que este filme não é um documentário, que é uma fábula sexual. E que em meio ao drama de ‘Babygirl’, também se pode rir e ficar excitado.”

BABYGIRL

– Quando Estreia nesta quinta (9), nos cinemas

– Classificação 18 anos

– Elenco Nicole Kidman, Harris Dickinson e Antonio Banderas

– Produção EUA, Países Baixos, 2024

– Direção Halina Reijn