SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Em Taiwan, aprovamos neste ano uma lei colaborativa, perguntando a cerca de 200 mil pessoas aleatórias em Taiwan, por meio de SMS, o que elas fariam a respeito de um golpe de criptomoedas online”, recorda a ex-ministra de Governo Digital e atual embaixadora de Taiwan, Audrey Tang, 41. Para ela, esse é um exemplo de que é possível colocar a internet a favor da democracia, não do discurso de ódio.
Em seu mais recente livro, Plurality (2024, ainda sem tradução para português, mas disponível em inglês para reprodução e edição livre), Tang critica o modelo de mineração predatório das conexões interpessoais adotado pelas redes sociais. “As plataformas fazem com que todos olhem para um pequeno canto de um panorama geral de ideias e percam a noção do todo ou de pluralidade”, afirma.
As atuais plataformas, segundo a embaixadora, podem ser aperfeiçoadas com interoperabilidade, permitindo que os usuários possam levar seus contatos para outras redes sociais, como já funciona o Bluesky, por exemplo. “É como o email, em que é possível conversar com pessoas de outros provedores, ou o Pix, no Brasil, que não depende de ter conta em um certo banco.”
Além disso, os próprios governos podem usar a tecnologia para estimular a formação de consensos no debate público, em vez do aumento de polarização decorrente da busca por engajamento nas redes sociais.
Na plataforma vTaiwan, as opiniões dos participantes de um debate sobre certa lei não ganham mais projeção a depender de quanto engajamento recebem, como ocorre no X (ex-Twitter) ou no Instagram. Os responsáveis pelo servidor usam um modelo de inteligência artificial para identificar as ideias mais citadas e depois identificar os possíveis pontos de conexão entre as propostas.
No caso da lei contra golpes online citada no início, uma parte dos 200 mil participantes iniciais (dentre uma população taiwanesa de 23 milhões de pessoas) se candidatou a participar da assembleia de alinhamento, na qual surgiam as primeiras ideias. Depois, uma amostra representativa de 450 pessoas foi escolhida e chegou à conclusão de que cada anúncio na internet deveria ter uma assinatura digital, para haver responsabilidade pelo anúncio fraudulento.
“Se a plataforma publicar o anúncio sem a assinatura digital, e alguém for enganado e perder US$ 1 milhão, a plataforma será responsável por esse valor a partir de 1º de janeiro de 2025”, detalha.
As pessoas se tornam mais engajadas ao perceberem que podem definir a agenda da administração pública, não apenas ratificar decisões preexistentes, diz Tang. “Para os funcionários do governo, economiza tempo e reduz o risco de serem responsabilizados por uma decisão sensível para um problema emergente”, acrescenta.
Foi com esse tipo de participação social que Taiwan atravessou a pandemia registrando 7.917 óbitos sem decretar lockdown em nenhuma cidade. A administração pública tinha um telefone disponível 24h para receber relatos da população taiwanesa. A partir dos dados, o governo limitava a circulação em áreas específicas e também dimensionava a distribuição e racionamento de máscaras.
Tang cita o orçamento participativo idealizado por prefeituras petistas nos anos 1990 como uma inspiração. O projeto brasileiro, porém, perdeu força ao longo dos anos. A retomada do programa foi uma promessa de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que implementou a plataforma Brasil Participativo, que tem mais foco em outros temas e recebeu 6.620 sugestões ao longo deste ano.
A embaixadora reconhece, por outro lado, que os governos têm uma barreira maior para superar junto à população em relação à suspeita de vigilância. A solução, de novo, seria “sociotécnica”, com aplicações de criptografia que permitem verificar a identidade da pessoa, sem revelá-la ao gestor do sistema.
“Se você vai provar, por exemplo, que tem mais de 18 anos ou que é elegível para algo porque é residente em uma cidade, não deveria ser necessário revelar toda a sua data de nascimento, seu endereço ou mesmo qualquer outro detalhe pessoal”, diz.
Questionada sobre a recente liderança chinesa na tecnologia, Tang diz que há uma diferença de concepção. “Taiwan torna o Estado transparente para os cidadãos, mas usando tecnologia, alguns autoritários estão tornando os cidadãos transparentes para o Estado.”
Para ela, contudo, o domínio chinês ainda é local. “Não me preocupo com eles sendo muito avançados em vigilância, em score social e em controle populacional porque não estamos vendo muita adoção de sua metodologia e ideologia no mundo; a maioria das pessoas no mundo ainda quer ver o Estado transparente.”
Ainda assim, Taiwan adota medidas preventivas em relação ao risco de vigilância por parte da China, uma vez que os países travam um conflito geopolítico desde 1949 o regime chinês se considera dono legítimo do território taiwanês. O app de vídeos curtos TikTok, por exemplo, é classificado como um risco de cibersegurança e tem uso proibido para menores de idade e funcionários públicos.
Ao mesmo tempo, a ilha adota estratégias de tecnologia, para evitar a dependência dos grandes monopólios americanos de tecnologia, como a preferência por programas de código aberto.
“Não obrigamos as pessoas a usarem software livre, mas dizemos que nossa infraestrutura pública precisa ser compatível com código aberto para que tenhamos padrões abertos”, afirma Tang. Assim, um documento de texto, por exemplo, tem de estar em formato “.ODT”, que pode ser aberto em qualquer programa, não apenas no Microsoft Word.
Como efeito, Taiwan sofreu, segundo Tang, bem menos do que a Europa e os Estados Unidos com o apagão cibernético global de julho, disparado por um curto-circuito entre o antivírus CrowdStrike e o Windows, da Microsoft. “Afetou apenas um hospital importante e, em uma hora, ele se recuperou; além disso, os sistemas de informação do governo não foram afetados.”
Para Tang, os países e seus povos precisam decidir o futuro do desenvolvimento tecnológico, para que a democracia também amadureça, evitando futuras crises por desinformação ou riscos da inteligência artificial. No livro, ela sintetiza: a democracia e a tecnologia são como duas asas de um pássaro. “Se não funcionarem juntas, a tecnologia desestabiliza a democracia e vice-versa”.
PLURALITY
– Preço R$ 156,13 (536 págs.); R$ 51,51 (ebook)
– Autoria Audrey Tang
– Editora RadicalxChange