SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma das imagens mais famosas da Segunda Guerra Mundial é a fotografia da captura da ilha de Iwo Jima: fuzileiros navais dos Estados Unidos, no topo do Monte Suribachi, erguem a bandeira americana sobre os destroços da batalha, uma das maiores e mais importantes do front do Pacífico contra o Japão.
A foto foi tirada pelo fotógrafo de guerra da Associated Press Joe Rosenthal em 23 de fevereiro de 1945 e publicada em jornais do mundo todo dois dias depois o jornalista ganhou um Pulitzer pela imagem.
Mas a vitória americana em Iwo Jima só foi possível graças a um grupo de fuzileiros cuja contribuição permaneceu um segredo de Estado por décadas e cuja importância só foi amplamente reconhecida meio século depois.
Tratam-se dos “code talkers” (falantes em código), soldados indígenas americanos da etnia navajo (pronuncia-se návarro) que desenvolveram um código para comunicação militar amplamente usado pela Marinha dos EUA contra o Japão na Segunda Guerra o único nunca desvendado pelos japoneses.
“Os code talkers chegaram a transmitir mais de 800 mensagens em apenas uma operação e foram cruciais para as vitórias americanas em Iwo Jima, Okinawa, Guam, e Guadalcanal, entre outras”, diz à Folha o historiador do Museu Nacional da Segunda Guerra Mundial dos EUA, John Curatola. “É difícil dizer que eles venceram a guerra, vencer uma guerra é um esforço em conjunto, mas eles foram de importância tática central.”
Iniciativas semelhantes utilizando outros idiomas indígenas já haviam sido empregadas pelos EUA na Primeira Guerra Mundial, mas o código navajo foi o mais utilizado na Segunda. Proposto por Phil Johnston, engenheiro filho de missionários que cresceu próximo à reserva navajo no Arizona, o código foi desenvolvido por 32 indígenas, 29 dos quais se voluntariaram após o ataque japonês contra Pearl Harbor.
“Dois fatos tornaram o código tão eficaz. Primeiro, o idioma navajo é extremamente complexo”, explica Judith Avila, biógrafa do code talker Chester Nez. “É um idioma tonal, e, se você não é um falante nativo, é muito difícil de compreender os sons. Segundo, era uma língua sem registros escritos na época ou seja, os japoneses ou alemães não poderiam aprendê-la mesmo se soubessem o que estavam escutando.”
Avila conversou com a reportagem por telefone ao lado de seu parceiro, Latham Nez, neto de Chester, um dos 32 fuzileiros navajos que desenvolveram o código e lutaram no front do Pacífico contra os japoneses. Morto em 2014 aos 93 anos, Chester foi o último dos code talkers originais a falecer. Para Latham, seu legado ajudou a preservar o idioma navajo.
“Os code talkers foram os primeiros a escrever navajo em um alfabeto fonético, e desde então a língua vem renascendo. Tentamos incentivá-la nas escolas, com as gerações mais jovens”, afirma Latham. “A história do meu avô foi um grande presente para a minha geração. Tínhamos um herói de verdade de quem se orgulhar.”
Chester tinha 21 anos quando se voluntariou para fazer parte dos fuzileiros navais dos EUA, conta Avila. “Ele cresceu em uma família que criava ovelhas no Novo México e foi criado como guerreiro todos os navajos são, meninos e meninas. Isso não significa que puxavam briga, mas sim que se você for convocado para defender sua terra, você estará lá.”
Os fuzileiros navais indígenas não foram segregados dos militares brancos, como aconteceu com os negros americanos que lutaram na Segunda Guerra. Ainda assim, o racismo era parte de suas experiências. “Durante a Batalha de Angaur, Chester foi capturado por um soldado do Exército americano, que apontou uma arma para ele e o acusou de ser um japonês vestido de fuzileiro naval dos EUA”, conta Avila.
“Por sorte, Chester conseguiu convencer o soldado a enviar uma mensagem de rádio para seu comandante. O oficial ficou horrorizado. ‘Esse é um dos homens mais valiosos que você vai encontrar na guerra. Não ouse machucá-lo!’, disse ao subordinado. Ou seja, os navajos eram valorizados pelas Forças Armadas”, afirma a biógrafa.
Ainda assim, os code talkers não foram reconhecidos publicamente por décadas após o fim do conflito. A existência do programa do código navajo só foi tornada pública em 1968. “Os fuzileiros indígenas que eram tão respeitados na Marinha acreditavam que poderiam voltar para casa, para a sociedade branca, conseguir um emprego e fazer parte de tudo, mas não foi o que aconteceu”, diz Avila.
“A situação dos indígenas americanos que existia quando eles foram para a guerra não mudou quando voltaram”, afirma Latham, neto de Chester. “Muitos dos code talkers não conseguiram encontrar trabalho e morreram de depressão, suicídio, alcoolismo. Não se conhecia muito sobre o estresse pós-traumático na época, então eles não receberam tratamento.”
“Isso me deixava com muita raiva quando estava na escola. Eu aprendi a nossa história e perguntei para o meu avô: Por que lutar por um país que fez tudo isso conosco, que nos oprimiu? E ele respondia: ‘porque eu não queria que acontecesse de novo'”, conta Latham, referindo-se ao extermínio a que os nativos americanos foram submetidos durante o período de colonização dos EUA.
Para a biógrafa de Chester, ele “estava perfeitamente ciente da história do seu povo”. “Não queria que os povos indígenas passassem por mais um período de assimilação, desta vez conduzido pelos nazistas ou japoneses”, diz Avila. “Foi uma das motivações para que ele se voluntariasse.”
Latham diz que seu avô foi um dos veteranos que teve sorte depois da guerra, conseguindo completar o ensino médio e chegando a cursar belas artes na Universidade do Kansas. “Essa era a sua paixão. Ele estava sempre desenhando e pintando”, conta. Chester precisou interromper os estudos por falta de dinheiro e trabalhou como pintor de um hospital para veteranos no Novo México por 25 anos.
Chester foi um dos code talkers homenageados com a Medalha de Ouro do Congresso americano em uma cerimônia conduzida pelo então presidente George W. Bush em 2001. Em 2012, dois anos antes de morrer, recebeu seu diploma de belas artes depois que a Universidade do Kansas concedeu os créditos que faltavam para a conclusão do curso com base em seu trabalho para a preservação do idioma navajo.
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Perguntas e respostas sobre os code talkers
Soldados indígenas foram cruciais para vitória dos EUA
Quem eram os code talkers?
Soldados indígenas americanos, principalmente da etnia navajo, que desenvolveram um código para passar comunicações militares no front do Pacífico na Segunda Guerra Mundial
Como o código funcionava?
As mensagens tinham como base o idioma navajo, um idioma complexo e pouco conhecido por pessoas não-indígenas. Para palavras que não existiam em navajo, os code talkers inventaram equivalentes, como ‘pássaro de ferro’ para avião
Por que ele foi tão eficaz?
A complexidade do idioma, aliado ao fato de que não havia registros escritos, tornava aprender navajo praticamente impossível para quem não tivesse nascido entre os indígenas
O que aconteceu com os code talkers depois da guerra?
Traumatizados pela guerra e sem apoio adequado, muitos morreram de causas como depressão e alcoolismo, e outros esperaram décadas até que sua contribuição fosse reconhecida