SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Falta muito pouco para que 2024 seja confirmado como o sucessor de 2023 no posto do ano mais quente dos últimos 125 mil anos. Após a divulgação dos dados de temperatura média global do planeta para o mês de novembro, cientistas do observatório Copernicus, ligado à União Europeia, dizem ser impossível que o recorde não seja quebrado pelo ano atual.
Em 2023, dados da instituição indicam que a temperatura média global foi de 14,98°C, cerca de 0,17°C acima do recorde anterior, que havia sido alcançado em 2016.
Estimativas como a que aponta que estamos no ano mais quente dentro dos últimos 125 mil anos são possíveis graças à paleoclimatologia, ciência que tem feito avanços cruciais para entender o comportamento do clima do passado.
Com mais informações sobre as tendências climáticas de tempos remotos, os modelos matemáticos são beneficiados, passando a fazer previsões mais precisas de como será o clima no futuro.
A paleoclimatologia preenche uma grande lacuna de conhecimento sobre tempos em que era impossível fazer uma medição de temperatura ou índices de chuvas, por exemplo. Medições diretas da temperatura da superfície do planeta começam a surgir em meados do século 19 no mundo; no Brasil, os dados de melhor qualidade aparecem nos anos 1960.
Com o uso de vestígios do passado chamados pelos cientistas de proxies pesquisadores podem reconstruir o ambiente de um determinado período do planeta e, a partir desse conhecimento, inferir como era o clima da época.
Esses arquivos naturais, registros indiretos do clima, podem estar presentes nas árvores e outras plantas vivas ou fossilizadas, fósseis de animais, geleiras, sedimentos depositados no fundo de rios, lagos e oceanos e até nos espeleotemas, que são as estalagmites e estalactites formadas pelo gotejamento da água que se infiltra nas cavernas.
Segundo o geólogo João Cerqueira, doutorando no Programa de Pós-Graduação de Geociências e Meio Ambiente da Unesp (Universidade Estadual Paulista), alguns dos vestígios mais importantes para os paleoclimatologistas são os foraminíferos, organismos unicelulares que desenvolvem uma carapaça de carbonato de cálcio para proteção.
Geralmente, esses seres são muito pequenos, com menos de 1 milímetro de comprimento, e seus microfósseis repousam no fundo dos oceanos.
O carbonato de cálcio é um elemento chave nesse processo; é na análise da composição dos isótopos de oxigênio e carbono presentes nessas estruturas que estão informações preciosas.
Isótopos são átomos de um mesmo elemento químico que têm diferentes quantidades de nêutrons no núcleo, o que confere a eles diferentes massas atômicas e comportamentos característicos sob determinadas condições.
O cientista explica que o isótopo de oxigênio-18, mais pesado e menos comum que o oxigênio-16, tende a se acumular em ambientes mais áridos. “Observando a mudança na composição dos isótopos de oxigênio, conseguimos identificar processos de aridificação ou de umidificação de um ambiente”, diz Cerqueira.
Já os isótopos de carbono estão relacionados à vegetação da região. A composição dos isótopos do solo pode indicar qual o caminho usado pelas plantas para fazer a fotossíntese e, consequentemente, revelar se a vegetação do local pertencia ao clima tropical (maior quantidade de carbono-13) ou temperado (menor quantidade de carbono-13).
Mas nenhum tipo de análise isolado é suficiente para definir o clima do passado. Além do estudo dos isótopos de oxigênio e carbono, os cientistas também examinam outros registros, como os fósseis de animais.
“É preciso fazer um estudo robusto, com vários tipos de proxies. É um grande quebra-cabeças, que pode ser montado com o conhecimento sobre os animais que viviam no local e a análise de outros elementos químicos”, afirma o geólogo.
PASSADO E FUTURO DO CLIMA
A pesquisa atual de Cerqueira tem como foco reconstruir o ambiente do vale do Zarqa, uma região na Jordânia, a partir de depósitos de carbonatos com cerca de 2,5 milhões de anos, quando ocorreu a transição das épocas geológicas Plioceno para Pleistoceno.
“Esse material é importante porque entre Plioceno e o Pleistoceno a concentração de CO2 na atmosfera era semelhante à atual”, diz.
As medidas de 2023 da concentração de CO2 na atmosfera apontam uma quantidade de 420 ppm (partes por milhão), segundo a Organização Meteorológica Mundial.
“Nessa região estão os mais antigos artefatos de hominíneos fora da África, então foi um caminho migratório para a espécie. Hoje a Jordânia é um deserto, com a maior parte sem vegetação. Mas nesses depósitos encontramos fósseis de mamutes, que com certeza bebiam muita água, entre outros animais. Queremos entender qual o clima que proporcionou uma Jordânia mais verde”, completa Cerqueira.
Segundo o geólogo Nikolás Stríkis, professor do Instituto de Geociências da USP (Universidade de São Paulo), a peleoclimatologia é um instrumento essencial para identificar os fenômenos que não fazem parte do ciclo natural e fornecer uma visão mais precisa do que pode acontecer no futuro, além de evidenciar como um evento climático em um local do planeta pode interferir no ambiente de outras regiões.
Stríkis cita como um exemplo do potencial da peleoclimatologia a mesma transição entre Plioceno e o Pleistoceno, última vez em que a Terra teve a concentração de CO2 na faixa de 400 ppm.
“Nesse período, não existia gelo na Groenlândia. Esse gelo permanente que vemos no Ártico, que não derrete no verão, só se forma quando a concentração de CO2 cai para baixo desse valor. Com base no registro, vemos que provavelmente não teremos a geleira permanente em breve”, diz.
Um estudo publicado no início de dezembro na revista Nature Communications trouxe uma previsão semelhante e que concorda com os dados paleoclimáticos. A pesquisa demonstra, com base em modelos matemáticos que o Ártico pode ter um primeiro dia em condições consideradas livres de gelo antes de 2030.
Em uma pesquisa feita com estalagmites em cavernas localizadas no norte de Minas Gerais, em uma região de cerrado, Stríkis comparou os registros dessas estruturas no Brasil com os de isótopos de oxigênio do gelo na Groenlândia ao longo dos anos.
“Durante os períodos frios na região congelada, os isótopos também mudam de comportamento nas estalagmites. Assim, o frio [na Groenlândia] corresponde a períodos superúmidos aqui, e os períodos mais quentes ali, representam fases mais secas nessa região de Minas Gerais”, explica o cientista.
“As informações vêm de fontes totalmente distintas, o que dá mais segurança na reconstituição do clima feita com base nesses indicadores. E isso pode ser feito em uma escala temporal longa, que chega a milhões de anos”, diz o meteorologista Pedro Leite da Silva Dias, professor no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP.
Dias afirma que muitos céticos do aquecimento global usam esses mesmos dados para argumentar que o planeta já foi muito mais quente do que é hoje.
“Sim, isso é verdade, mas foi há milhões de anos, era um outro mundo, inclusive na distribuição de continentes e oceanos, com outras espécies habitando a Terra. Estamos interessados no aquecimento e na sobrevivência agora”, conclui.