PORTO ALEGRE, RS E ELDORADO DO SUL, RS (FOLHAPRESS) – Os indígenas da etnia guarani mbya, que vivem às margens da BR-290 na região de Eldorado do Sul (RS), estão cansados dos “kuttiá” papel, na língua tupi-guarani que aparecem com projetos e promessas.
O processo de demarcação da sua terra começou em 2009, mas nunca avançou. Em 2017, devido à duplicação da rodovia, foi aprovado um PBA (Plano Básico Ambiental) que previa o assentamento da comunidade em um novo território de 300 hectares, até hoje sem conclusão.
No último mês de maio, sua aldeia foi destruída durante ação do Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) para recuperar a estrada impactada pelas enchentes no sul do Brasil. Eles perderam tudo, de máquinas para artesanato e sementes guaranis a placas solares.
Agora, estão em outro local, sem energia elétrica, sem sombra para se protegerem do sol nem armazenamento seguro para água e continuam ouvindo promessas. “Até hoje ninguém está nos ajudando, nem o Dnit”, diz o cacique do acampamento Pekuruty, Estevan Garai.
À época do ocorrido, o Dnit justificou que a ação na aldeia foi emergencial para que se pudesse devolver o quanto antes a trafegabilidade no km 132 da BR-290. A partir daí, segundo o órgão, em quatro dias foi possível restabelecer a conexão entre Porto Alegre e outros municípios.
Estevan e sua família foram resgatados pela Defesa Civil na antiga aldeia, só com a roupa que já tinham no corpo, quando parte da rodovia rompeu e a água inundou a comunidade. “Ainda estava tudo em pé”, diz, sobre as casas e a escola, ao saírem. “Não foi a água.”
Segundo o cacique, eles passaram três dias em um abrigo até que voltaram para verificar como estavam os animais e, então, as construções tinham sumido. “Meu cunhado me ligou e perguntou o que aconteceu. Eu disse: Não sei. Ele falou que destruíram tudo na minha casa”, diz Estevan.
A ação do Dnit para reconstruir a estrada colocou abaixo as estruturas da aldeia, aterrou-a e mudou o curso do rio que passava na lateral do território para dentro dele. Não foi possível recuperar nada do que havia sido construído durante 15 anos pela comunidade indígena.
A partir da rodovia, ainda é possível ver uma mesa antes utilizada na escola e um cobertor, parcialmente soterrados na terra posta em cima do que era a aldeia. “É muito triste”, diz Estevan, que perdeu também a casa de reza onde praticava seus rituais.
O professor da Pekuruty, Artemio Marques, diz que até hoje o ressentimento é muito forte entre os guaranis mbya. “Por tudo que foi feito. A irresponsabilidade, a falta de respeito, as mentiras sobre o cacique ter permitido a destruição da aldeia para reconstruir a ponte”, diz. “Acabaram com tudo.”
O MPF (Ministério Público Federal) e a Defensoria Pública da União moveram ações civis públicas contra o Dnit para reparação da aldeia, mas, segundo os indígenas, nem o acordado em audiências de conciliação foi cumprido de forma satisfatória.
Segundo os acordos, o Dnit deveria colocar uma placa indicando que há uma terra indígena no local e ajudar na estrutura do novo acampamento com espaços para sombra, por exemplo, além de dar continuidade ao PBA.
A placa foi colocada. A estrutura para sombra, porém, tem sido motivo de piada entre as famílias indígenas: é uma tela apoiada em estacas de madeira, que parece uma estufa para plantação de hortaliças. Estevan brinca que é o “galpão” e sugere fazer a entrevista embaixo da tela, sob sol e calor.
Procurado pela Folha de S.Paulo, o Dnit afirmou que a contratação dos serviços de consultoria para a implementação do PBA, com a compra do terreno de 300 hectares, está em tramitação. Também pontuou que, na nova área a ser adquirida, estão previstas casas de alvenaria, “mais seguras e adequadas às condições climáticas rigorosas do estado”.
Questionado sobre bens pessoais não restituídos, a falta de estrutura no novo acampamento e a área de sombreamento, o órgão não respondeu.
No mês de novembro, o Dnit abriu um edital para encontrar a empresa que será responsável por achar uma terra de 300 hectares para a aldeia Pekuruty, mas a comunidade não espera que o procedimento seja concluído antes do segundo semestre de 2025.
Por enquanto, diz o cacique, eles precisariam de uma melhor estrutura para viver até que sejam realocados e de ajuda para recuperar o que perderam. As famílias ainda vivem em casas de madeira construídas às pressas após a enchente, que não protegem do sol, sem energia elétrica e sem todos os outros itens perdidos em maio.
Caixas-dágua para supri-los foram colocadas à beira da estrada, com acesso pela rodovia, pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena). Antes, eles tinham acesso a um rio. Em dezembro, os indígenas sentiram um gosto estranho na água e descobriram uma cobra morta em uma das caixas, que tinha um buraco na parte superior.
Segundo o professor, as famílias se inscreveram para receber o auxílio reconstrução, um benefício de R$ 5.000 destinado àqueles que ficaram desabrigados ou desalojados devido à tragédia, mas não receberam qualquer resposta. “A gente não é escutado”, diz.
Além da situação precária da nova instalação, o membro do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) Roberto Liegbott afirma que a comunidade Pekuruty também virou alvo de ameaças de vizinhos.
“Eles vivem aqui nesta insegurança. Há um mês, um fazendeiro deu um tiro e matou o cachorro deles. Ameaçaram envenenar a água deles”, conta Liegbott. “Eles não têm para onde se locomover, de onde tirar material para artesanato, que é a base de sua sustentação econômica.”
Em 6 de dezembro, o acampamento foi visitado pelo relator especial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Javier Palummo. Ele passou uma semana no Rio Grande do Sul para observar os impactos das enchentes.
Ainda em 2023, cerca de 250 pessoas de 38 comunidades guaranis mbya do estado se reuniram em Eldorado do Sul para reivindicar a demarcação das terras.
Estevan diz que, desde criança, com o pai e a mãe, viveu à margem de rodovias, uma vez que o território original foi ocupado por fazendas. “Estou cansado da estrada. Queremos plantar, criar bichos. Queremos um lugar mais tranquilo.”
O projeto Excluídos do Clima é uma parceria com a Fundação Ford.