SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A maioria dos diretores que passaram pelo Banco Central nos últimos 20 anos atravessou uma “porta giratória” que a levou a ocupar cargos de prestígio em instituições privadas do mercado financeiro.

De 33 indivíduos que comandaram pelo menos uma de oito diretorias da autarquia federal responsável pelo comando da política monetária, fiscalização e regulação do mercado, 22 (66,6%) se transferiram para instituições financeiras privadas após deixar o posto.

Antes de entrar no BC, apenas 11 dos 33 diretores nomeados a partir de 2003 tiveram como origem bancos e instituições financeiras privadas –os dados não consideram diretores em exercício.

A discrepância entre aqueles que chegaram ao BC vindos do setor privado (11) e os que foram trabalhar nele ao deixar o órgão (22) revela como o posto de diretor na autarquia pode alavancar carreiras.

O salário bruto de um diretor do BC que vem de fora da instituição é hoje de R$ 18.887,14, podendo ser maior se o indicado vier da própria autarquia.

O valor é muito inferior ao de cargos ocupados por ex-diretores no setor privado. Segundo a consultoria Michael Page, diretores de bancos de atacado, varejo e digitais são os mais bem pagos do Brasil, com salários mensais superiores a R$ 62 mil, considerando só o rendimento bruto, sem contar bônus e outras vantagens.

No caso dos presidentes do BC, entre 2003 e 2011 a cadeira foi ocupada por Henrique Meirelles, oriundo do FleetBoston Financial e que se dirigiu, ao sair do cargo, ao grupo J&F, dono da JBS e do banco Original.

Meirelles foi substituido por Alexandre Tombini em 2011. Funcionário de carreira do BC antes de assumir a presidência, Tombini deixou o cargo em 2016 e foi para o FMI.

Seu sucessor, Ilan Goldfajn, entrou no BC no mesmo ano vindo do Itaú-Unibanco e foi para o Credit Suisse após deixar o posto. Desde então, o BC é presidido por Roberto Campos Neto, que trabalhou por muitos anos no Santander até assumir o posto. Seu mandato termina em dezembro de 2024.

Há duas visões, contrárias, sobre a chamada “porta giratória” que leva dirigentes do Banco Central ao mercado financeiro privado.

Na primeira, haveria conflito de interesse: presidentes e diretores seriam “capturados” pela intenção futura de atuar no setor privado, o que comprometeria sua independência no comando do Banco Central.

A outra é que seria natural a pessoas recrutadas pelo governo no mercado retornarem a ele após saírem do BC. E que, mesmo aqueles originários de órgãos públicos ou internacionais, aproveitem a experiência no BC para atuar no setor privado.

Como nos Estados Unidos e na Europa, não existe restrição para que ex-diretores do BC atuem antes ou depois no setor privado. Um padrão, no entanto, mostra que diretorias menos sensíveis ao mercado (como nas áreas de Administração e Relacionamento) não acabam abastecendo o setor privado com muitos ex-diretores.

Já diretorias como as de Política Econômica e Monetária geralmente levam ex-diretores a atuar, após saírem do BC, no setor privado.

A única restrição no Brasil à prática da “porta giratória” é a chamada quarentena. A lei, que tem 11 anos, ampliou de quatro para seis meses o período em que integrantes da cúpula do serviço público federal (incluindo diretores do BC) devem permanecer afastados de trabalhos privados relacionados aos cargos que ocuparam no governo. Eles mantêm a remuneração do posto que ocupavam.

Além da prevalência de profissionais que acabam se dirigindo ao mercado financeiro privado após saírem do BC, pesquisas identificam a preponderância de universidades “mainstream”, consideradas ortodoxas (anglo-saxãs ou, no caso brasileiro, entre outras, a PUC-Rio, liberal em economia), como provedoras de profissionais para as diretorias da autarquia.

“Muitos desses diretores não querem, de uma certa forma, destruir a própria carreira indo de encontro aos seus futuros chefes ou futuros clientes no mercado. Por isso, podem acabar tomando decisões favoráveis a eles”, afirma Eric Gil Dantas, economista e doutor em ciência política da Universidade Federal do Paraná.

“Muitos deles também já vinham sendo socializados dentro de instituições que pensam como eles, seja no mercado privado ou na própria academia ortodoxa.”

Dantas e outros autores publicaram em 2023 “Os Mandarins da Economia” (Edições 70), que trata da relação entre a autonomia do Banco Central, em vigor desde 2021, e seus diretores com o mercado privado.

Em sua tese de doutorado na UFPR, Dantas identificou 89 diretores do BC nomeados entre os governos José Sarney (1985-1990) e Dilma Rousseff 2 (2011-2016). Do total, 54 (67%) saíram pela “porta giratória” em direção ao mercado financeiro privado –e 46 (52%) vieram de instituições acadêmicas consideradas “mainstream”, de perfil ortodoxo.

Para a socióloga Maria Rita Loureiro, professora aposentada da FGV, da USP e autora de “Os Economistas no Governo” (Editora FGV), a chamada “porta giratória” e a “captura” do Banco Central por interesses privados impede muitas vezes o recrutamento de diretores que não vêm do mercado ou de universidades “mainstream” –o que bloquearia a circulação de ideias diferentes.

“O que se critica é a ideia de que alguns grupos poderosos financeiramente acabam tendo influência ou dão uma direção predominante a decisões de atores que estão ocupando cargos públicos. Isso tudo é feito numa linguagem que oculta os interesses privados. Qual é? A famosa decisão técnica”, diz.

O economista-chefe da Genial Investimentos e ex-professor da PUC-Rio, José Márcio Camargo, considera “natural” que grande parte dos diretores das áreas de Política Econômica e Monetária venham, ou depois se encaminhem, para o mercado financeiro privado.

“São pessoas que, bem ou mal, estão envolvidas no processo de determinação da política monetária, mesmo quando não estão no BC. Elas estão, de uma forma ou de outra, assessorando investidores sobre como investir e calculando o preço dos ativos”, afirma.

Camargo lembra que o próprio Banco Central consulta semanalmente, por meio da pesquisa Focus, dezenas de agentes do mercado financeiro sobre perspectivas para a inflação e as taxas de juros futuras.

“É natural que seja assim. Se o diretor foi para o Banco Central e os investidores acham que ele fez a política correta, faz todo sentido que alguém do mercado financeiro tente incorporá-lo. Não vejo problema”, afirma.

No atual governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) empossou quatro novos diretores: Gabriel Galípolo, que já presidiu o Banco Fator e era secretário-executivo do Ministério da Fazenda antes de assumir a diretoria de Política Monetária, e Ailton Aquino, funcionário de carreira no BC, na diretoria de Fiscalização.

Entraram também Paulo Picchetti, especialista em inflação da FGV-EESP, na diretoria de Assuntos Internacionais; e Rodrigo Alves Teixeira, servidor de carreira do BC, na diretoria de Relacionamento, Cidadania e Supervisão de Conduta.

Outros três diretores devem assumir no início de 2025: Nilton David, chefe da tesouraria do Bradesco na diretoria de Política Monetária, em substituição a Galípolo, que passará a presidir o BC; Gilneu Vivan, funcionário do BC, na diretoria de Regulação; e Izabela Correa, também do BC, atualmente cedida para a Controladoria-Geral da União, na área de Relacionamento, Cidadania e Supervisão de Conduta.