SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – João Batista Natali voltou da ginástica e se sentiu “dentro de um imenso parque infantil, sem saber ao certo por qual brinquedo começar”. Era 3 de novembro de 2008, e ele escolhia o que fazer com o tempo uma vez que a Folha, titular daquela rotina por quase dois terços de seus então 60 anos, não mais o ocupava.

“A nova vida de verdade começa nesta segunda-feira”, contou em email a esta amiga naquele primeiro dia de aposentadoria.

“Acho que vou primeiro ler um pouco de Stendhal, um dos livros que trouxe da França. Depois, dar um jeito nas tranqueiras que trouxe de meu gaveteiro. E em seguida almoçar, dormir um pouco e mais tarde ficar abraçado com o violoncelo.”

Essa nova rotina espelhava uma vida. Natali, afinal, sempre foi música e literatura tanto quanto foi jornalismo, e a França onde vivera de 1971 a 1982 se fez presença permanente, das preferências culturais às precisas análises geopolíticas.

Ele próprio explicou, em um longo depoimento com vocação para livro, em 2001: “Nunca me senti única e exclusivamente jornalista. Sou muitas coisas ao mesmo tempo”.

Era mesmo. Após aquele 2008 da virada, acrescentaria outras tantas em sua lista, que já acumulava correspondente internacional, orientando do filósofo Ronald Barthes (1915-1980), secretário de Redação da Folha, repórter, editor de “Mundo”, pai do André, marido da Daniele e cozinheiro talentoso.

Ainda seria comentarista da TV Gazeta, professor, diretor de Redação do Diário do Comércio, colunista da Folha. A mais importante veio no fim de 2009, quando nasceu Heitor: aos 61, era pai pela segunda vez. Os feitos do filho nos esportes e na escola eram objeto de um orgulho incontível que compartilhava com os amigos.

João Batista Natali Jr —Natali para os amigos e leitores, Júnior para a família, João para a mulher— morreu na madrugada deste sábado (21), em São Paulo, mesma cidade onde nascera em abril de 1948. Ele estava internado desde 11 de novembro no hospital Sírio-Libanês para tratar de complicações decorrentes de um câncer no cérebro.

O tumor, que lhe roubou por um curto período sua intimidade com as palavras, foi o primeiro a combali-lo.

Doenças passadas, como um câncer no pulmão no início do ano, um quadro gravíssimo de Covid em 2021 e sucessivos problemas cardíacos antes disso, eram tratadas pelo jornalista com humor e pragmatismo.

Ao seu lado estava, como sempre, Daniele, companheira e inspiração nas últimas duas décadas. “João é exemplo de marido, de pai, de homem que esbanjava amor, companheirismo, respeito por todos que cruzaram seu caminho”, conta ela.

“Ele viveu grandes paixões nessa vida, sempre intensamente: o jornalismo, a música clássica, as histórias saborosas descobertas nos livros ou nas longas conversas por aí. Amou demais André, o primeiro filho, 39 anos, e Heitor, que acaba de completar 15 anos, fruto de nosso casamento.”

André e Heitor, como ela, mantiveram-se junto dele, animando-o até os últimos momentos. “Construímos uma família feliz, uma coleção de lindas memórias e uma história de amor que não termina aqui.”

Filho de João Batista Natali e Celina Antunes Natali, era o mais velho de três irmãos.

Ele, Adalberto e Paulo Sérgio cresceram na casa no bairro do Butantã, onde dona Celina liberou uma das paredes para os três meninos desenharem. A cumplicidade permaneceria por toda a vida, e os três eram entusiastas dos encontros da família completa em uma pizzaria no Itaim.

Do pai, evocava o dia em que este o conduziu pela mão, ele ainda com seis anos, até o centro de São Paulo para observar a confusão nas ruas após a notícia do suicídio de Getúlio Vargas, como contou inúmeras vezes à amiga Lucia Boldrini. Da mãe, guardou o hábito de recortar reportagens de O Cruzeiro.

Adolescente, fez intercâmbio nos Estados Unidos durante o ensino médio, experiência que o marcou vivamente. De volta, já em 1967, faria parte da primeira turma de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde se formou em 1971.

Seu percurso no jornalismo, contudo, começaria bem antes da formatura —talvez no dia em que seu João o levou para assistir à política acontecer na praça; mas, oficialmente, na sucursal paulistana do Última Hora, em que iniciou no mesmo ano em que ingressou na faculdade.

À Folha ele chegaria em 1969, no dia em que foi criada uma equipe de emergência para fazer um caderno especial sobre a chegada do homem à Lua.

“A missão Apollo 11 já estava havia dias no espaço. Fui avisado que precisaria fazer um teste para conseguir o emprego. Não deu tempo. Precisavam de gente para aquela cobertura.”

Começaria aí um relacionamento de 38 anos, brevemente suspenso durante o mestrado em Paris, que o levaria a dezenas de cidades do Brasil e do mundo e a amizades sólidas e longevas, como a que construiu com o ex-diretor de Redação Claudio Abramo (1923-1987), a quem considerava um mentor.

Luiz Frias, hoje publisher da Folha, guarda memórias da época parisiense. “Adolescente, conheci Natali como correspondente do jornal na capital francesa. Ficou em Paris por muitos anos”, conta.

“Sabia tudo sobre a cidade e a França: história, política, literatura, música. Fumava o Gauloises do famoso maço azul, sem filtro, muito popular à época. E, às vezes, me passava a impressão de falar mais rápido e mais sem erros do que os próprios franceses.”

Frias o considera um ser humano extraordinário, “sempre atencioso e solícito para com todos”. “A Folha perdeu um grande e querido colaborador.”

Paciente, gentil, culto e profundamente interessado no interlocutor, conquistou legiões de admiradores e amigos em tempos em que a atenção tornou-se luxo. As conversas nunca eram breves, e não se saía delas sem ter aprendido mais uma coisa ou duas, de política a poesia, e principalmente sobre música clássica.

Forjado em diferentes fases do jornalismo e distintas eras políticas, era mordaz com quem se deslumbrasse com a profissão e sua proximidade do poder. Ainda assim, raramente se cansava de ensinar, mostrar e explicar, talentos que o conduziram depois à sala de aula como professor na Cásper Líbero e na PUC-SP.

Esse pragmatismo com que encarava o jornalismo jamais descambou para cinismo nem permitiu que perdesse o interesse.

Escreveu até o fim, nos últimos anos a coluna Mundo Leu, na Folha, sem tentar se encaixar em lugar específico nem minimizar suas pulsões, tampouco deixando de levar em conta as expectativas de sua plateia. Era, antes de tudo incansável. Um apaixonado.