SÃO PAULO, SP, E RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Eles estão entre os maiores artistas do país e nunca deixaram de fazer parte da trilha sonora das novelas, mas já fazia algum tempo que os sertanejos não se apresentavam em carne e osso nas telas da Globo. Durante esse distanciamento, alguns expressaram críticas à emissora, muitas delas de cunho político. Mas as barreiras entre a música mais ouvida no Brasil e o maior canal de televisão do país agora estão ruindo.

No rastro da estreia do programa Viver Sertanejo neste domingo –uma roda de conversa e cantoria apresentada por Daniel, ex-dupla de João Paulo, em sua fazenda no interior paulista–, a Globo exibe na noite desta quarta o show “Amigas”, que reúne Ana Castela, Lauana Prado, Maiara & Maraísa e Simone Mendes.

Por trás desse interesse renovado da Globo pelo sertanejo está seu desejo de atingir um público mais conservador, que pode ter se afastado do canal nos últimos anos –afinal, uma grande parte dos cantores desse gênero apoia Jair Bolsonaro, e o ex-presidente tinha a emissora entre seus principais alvos.

O novo Viver Sertanejo, aliás, foi criado depois de uma pesquisa encomendada pelo canal apontar que os espectadores sentiam falta desse universo na grade de programação, sobretudo na manhã de domingo, como uma extensão do retrato da vida no campo feita pelo Globo Rural.

A iniciativa já rendeu. Em São Paulo, o principal mercado publicitário do país, o Viver Sertanejo elevou a audiência da emissora na manhã de domingo em quase 60% em relação às quatro semanas anteriores. No Rio de Janeiro, a alta foi de 25%, um aumento ainda bastante animador, visto que a capital fluminense sempre teve certa aversão ao sertanejo.

Para se ter ideia, no YouTube, nenhum dos dez artistas mais ouvidos no Rio de Janeiro nos últimos 12 meses é do gênero sertanejo, enquanto, na capital paulista, quatro deles são desse estilo, segundo a Chartmetric, empresa americana que coleta dados dos serviços de streaming para profissionais da indústria da música.

Na estreia, Daniel recebeu Lauana Prado e a dupla As Marcianas, formada nos anos 1980 e hoje composta por Celina Sant’Angelo e Adriana Bastos. O programa seguirá, até abril, trazendo um artista contemporâneo e outro que marcou o passado do sertanejo.

O elenco da estreia não foi escolhido ao acaso. Prado teve, no primeiro semestre, a música mais tocada do país nas rádios, uma regravação de “Escrito nas Estrelas”, de Tetê Espíndola, que ilustra sua posição no sertanejo –a de atualizar o cancioneiro nacional com uma produção moderna.

Daniel também ouviu das Marcianas sobre como enfrentam o machismo, e Sant’Angelo caiu em lágrimas ao contar que o pai –João Mineiro, que formava dupla com Marciano– reprovava sua carreira de tal modo que a mandou esconder que era sua filha. Mas ninguém lembrou ali que Prado é bissexual. A omissão sinaliza, segundo pessoas próximas ao desenvolvimento do programa, o desejo da Globo de não desagradar a parcela mais conservadora da audiência.

A escolha de Daniel como apresentador também é uma estratégia para agradar a todos. Além de ter afinidade com a emissora, tendo já feito novelas e participado do reality show The Voice Brasil, ele transita entre o sertanejo antigo e o novo, é respeitado pelos artistas de todas as fases e ainda não se envolve em polêmicas.

“Sou assim. Se gostasse de reivindicar certas coisas, de expor ideias, talvez fizesse diferente, mas tem momentos em que dar a opinião não vem ao caso”, diz Daniel, ao ser questionado sobre por que prefere não falar de política.

“Os cantores são instrumentos de felicidade, esperança e paz”, diz Daniel, o oposto de Gusttavo Lima, o nome que o SBT escolheu para o seu especial de fim de ano, que foi ao ar nesta terça-feira.

Gusttavo é o cantor que mais apoiou Jair Bolsonaro, além de pregar em seus shows Deus, pátria, família e os demais valores cultuados pelo ex-presidente. Isso sem contar as polêmicas que o cercam –ele quase foi preso numa operação da Polícia Federal sobre bets e esteve no centro das investigações do Ministério Público sobre cachês milionários pagos a artistas por prefeituras de cidades pequenas, a chamada “CPI do Sertanejo”.

Mas há artistas polêmicos também na Globo. Sérgio Reis, que há dois anos jurou não colaborar mais com o canal, é um dos convidados do Viver Sertanejo.

Nos bastidores, essa reaproximação é interpretada como um desejo de dialogar com os conservadores, mas não como uma vontade de se tornar a casa desse público. Prova disso é que, para seu especial de fim de ano, a Globo convidou mulheres com músicas e posicionamentos progressistas.

O show “Amigas” abre com “Coração Sertanejo”, um sucesso de Chitãozinho & Xororó dos anos 1990, estabelecendo um diálogo com o passado –algo que volta a se repetir com “Evidências”, “Você Vai Ver” e “Nuvem de Lágrimas”, também da dupla–, mas a maior parte da apresentação é feita de hits das próprias artistas.

Ana Castela, uma menina de 21 anos que vem da roça, mas é moderninha, ilustra as fricções das “Amigas” no sertanejo. Embora hoje cante romances açucarados –como “Nosso Quadro”–, ela começou a carreira misturando sertanejo e funk em “Pipoco”, faixa calcada em metáforas sexuais –“nem oito segundos o peão não aguenta com essa sentada”.

Essa mudança, aliás, é algo que Castela frisa em entrevistas. “Eu me dou muito bem com os mais novos, em questão de roupa, das batidas animadas na música, que as crianças e os jovens gostam. Só as letras. Tem umas letrinhas que não são tão legais para crianças escutarem, mas a gente vai melhorando”, diz ela, que não deixa, porém, de incluir as músicas antigas na setlist de seus shows.

Simone Mendes também causa frisson. Na Globo, seguindo um roteiro, isso transparece pouco, mas qualquer um que já tenha visto um de seus shows sabe que a cantora, com muito humor, não teme quebrar o decoro. Suas falas vão do que ela tem feito para manter a vida sexual ativa até sobre como uma mulher deve ser tratada no casamento, o que dividiu o público da última Festa do Peão de Barretos, a meca do sertanejo no interior paulista, entre aplausos e xingamentos.

Maiara & Maraísa, por sua vez, são conhecidas por sua sofrência etílica, algo que ainda causa estranhamento em parte do público. As canções da dupla escolhidas para o especial são as mais românticas, como “Medo Bobo”, mas são delas hits como “Aí Eu Bebo” e “Bebaça”, gravada em parceria com Marília Mendonça.

Num gênero musical que até hoje tem a pecha de ser pouco aberto às mudanças sociais, é difícil tachar de conservador um show de mulheres cantando não só sobre o quanto amam, mas também sobre o quanto bebem, sentam e cavalgam –numa aposta que ilustra o desejo da Globo de não se prender ao passado, como fazem as concorrentes, mas sem irritar uma parcela importante do público.

Amigas

Quando: Na TV Globo e no Globoplay, nesta quarta-feira (18), às 22h40

Classificação: 12 anos

Produção: Brasil, 2024

Direção: Raoni Carneiro

Na TV Globo e no Globoplay, aos domingos, às 10h15

Classificação: Livre

Produção: Brasil, 2024

Direção: Gian Carlo Bellotti