BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Algumas cidades do Piauí escolheram prefeitos em outubro com placar apertado e em meio a uma série de suspeitas de fraude por meio da chegada massiva de eleitores de outros municípios.

Investigações das autoridades eleitorais e acusações mútuas entre as chapas concorrentes apontam para uma enxurrada de transferências de títulos de eleitor lastreadas com base em comprovantes emitidos por microempresas de telefonia atestando um endereço do eleitor que, na realidade, é falso.

Esses boletos são aceitos como comprovantes de endereço pela Justiça Eleitoral, que em geral autoriza o cidadão a votar na cidade para a qual ele afirma ter se mudado.

Como revelou a Folha, há uma suspeita de fraude generalizada nas eleições de 2024 em várias pequenas e médias cidades do país por meio da transferência coletiva de eleitores cooptados para votar em determinados candidatos, o que pode ter sido determinante para a eleição de vereadores e prefeitos.

A principal suspeita é a de que eleitores de cidades vizinhas (em geral polos em suas regiões) tenham aceitado fingir a mudança de residência para esses pequenos e médios municípios em troca de dinheiro ou benefícios oferecidos pelos candidatos.

No caso de três cidades do Piauí, o município supostamente “fornecedor” de eleitores foi Picos.

Em uma dessas cidades, os dois concorrentes trocaram acusações entre si de cooptação de eleitores de outras cidades para tentar inflar de forma fraudulenta a respectiva votação. Em outra, áudios anexados a processo mostram candidatos dizendo ter cometido a fraude.

São Luis do Piauí, por exemplo, é uma pequena cidade de 2.309 habitantes contados pelo Censo 2022. Só em 2023 e 2024, porém, recebeu a transferência de 1.201 títulos eleitorais, impactando uma eleição disputadíssima e se tornando a segunda cidade do país com o maior crescimento de eleitores só por meio de títulos vindos de outras cidades (45%).

Renato Pio (PP) venceu Josafá Marques (PT) por uma diferença de 32 votos, obtendo seu quinto mandato.

PT e PP apresentaram, um contra o outro, denúncias de cooptação ilegal de eleitores de outras cidades, o que motivou investigação pelo Ministério Público, ainda sem conclusão na Justiça Eleitoral, e pela Polícia Federal.

A Promotoria pede o cancelamento das transferências de 67 eleitores. O relatório da investigação aponta, por exemplo, que em maio pai, mãe e filho foram presos em flagrante por tentar transferir seus domicílios eleitorais para a cidade com uma conta de luz falsificada.

Em vários casos, os eleitores apresentaram comprovante de residência emitidos pela mesma operadora de telefonia celular, a Start Cell, que disse tê-los emitido por vendas efetivadas no balcão de sua loja, que fica em Picos, mas não apresentou à Justiça as notas fiscais solicitadas.

A empresa confirmou que não checa se o endereço declarado pelo consumidor é verdadeiro.

Situação semelhante aconteceu em Santo Inácio do Piauí. Ali o Ministério Público identificou, depois de uma denúncia anônima, diversas transferências justificadas com boletos de outra microempresa de telefonia, a Alves Telecom, usados como comprovante de endereço.

No processo, a empresa de telefonia fixa disse que não conseguiria comprovar a relação contratual com os clientes ou porque o técnico se “esqueceu” de levar o contrato no dia da instalação ou porque chegou no endereço e não encontrou o cliente para quem gerou o boleto.

A Alves Telecom disse, durante o processo, que mudou a forma de operação em 2024 após identificar uma “enxurrada” de pedidos de troca de titularidade em Santo Inácio.

Em sentença publicada na semana passada, o juiz Luiz de Moura Correia citou o caso de um investigado que juntou, como prova de domicílio, “uma fatura de água em nome de seu pai, que, conforme ele mesmo afirma, faleceu em 2018, o que causa perplexidade.”

Na cidade, que recebeu 350 novos títulos entre 2023 e 2024, Dr. Auro (PT) venceu por 331 votos de diferença na disputa contra Francisco Átila (PSB).

Na decisão da semana passada, 12 transferências de título foram anuladas, incluindo a de quatro pessoas que afirmaram ser funcionárias domésticas de Átila.

Em Aroeiras do Itaim, cidade também próxima a Picos, o MDB questionou na Justiça em fevereiro todas as 458 transferências de títulos até então realizadas no ano.

Alegou, no processo, que a cidade tinha 2.690 habitantes no Censo 2022, mas já somava 3.937 eleitores. Também uma única microempresa de telefonia, a Progressonet, emitiu a maior parte dos comprovantes de endereço apresentados à Justiça Eleitoral.

Na semana anterior ao pleito, o juiz Adelmar de Sousa Martins negou o cancelamento imediato das transferências afirmando ser necessária uma apuração individual e mais criteriosa para aferir se “efetivamente ocorreram as irregularidades apontadas”. Segundo ele, negar o direito ao voto a 458 pessoas sem o contraditório seria uma violação ao princípio do devido processo legal. Desde então, os eleitores estão sendo acionados um a um.

No dia da eleição, 4.402 pessoas estavam aptas a exercer o voto em Aroeiras.

Marciano Macedo (PSD) venceu por 339 votos o candidato do MDB, Wesley de Deus, representante da família que há 20 anos comanda a cidade.

Em Bom Princípio do Piauí, cidade próxima a Parnaíba, áudios de WhatsApp anexados a processo na Justiça Eleitoral mostram vereadores discutindo quem conseguiria transferir mais títulos para a cidade.

“Hoje nós levamos uma faixa de 70, 80 pessoas para ajeitar título, enquanto eles lá [adversários] levaram umas 10, 15. Em termos de transferência de títulos, de ajeitar títulos, a diferença é muito grande. Hoje estava eu, Jailson, Germarcio, Zé do Chico Bento, Junior do Milhão, era indo levar, trazer, buscar”, diz Jacinto Moraes (MDB), então presidente da Câmara, em um dos áudios.

Os áudios foram apresentados à Justiça pelo PSB, que conseguiu anular 17 transferências de título e elegeu o prefeito Apolinário com 3.196 votos, contra 2.680 de Lucas Moraes (MDB), candidato à reeleição e filho do então presidente da Câmara. Jailson (PT) e Germarcio (PSD), citados no áudio, foram eleitos vereadores.

A Folha procurou todos os candidatos sobre os quais pesam suspeita de participação em fraude eleitoral, mas não os localizou ou não houve manifestação.

Suspeita de fraude por transferência de eleitores

Qual é a suspeita

A Justiça Federal e a Polícia Federal investigam as transferências em bloco de domicílio eleitoral de votantes de cidades pequenas e médias, o que pode ter sido determinante para a eleição de prefeitos e vereadores.

Exemplos em SP e MG

Em Fernão, a 400 km de São Paulo, o candidato Bill (PL) foi eleito prefeito com diferença de apenas 1 voto em relação a Zé Fodra (PSD): 522 votos a 521. O eleitorado oficial da cidade cresceu 17% só com a transferência de títulos, o que fez com que o número de eleitores aptos fosse maior do que o total de moradores.

Outro caso ocorreu em Divino das Laranjeiras, no sul de Minas Gerais. A cidade tem 4.178 habitantes, segundo o Censo de 2022, tendo encolhido 15,4% em relação ao levantamento anterior de 2010. No caso do eleitorado oficial, porém, ocorreu o inverso: um crescimento de 15,6% em relação à eleição anterior, chegando a 4.968 pessoas.

Como seria a fraude

Para transferir seu local de votação, o eleitor precisa comprovar vínculo residencial, afetivo, familiar, profissional ou comunitário com a nova cidade. Segundo as investigações, há indícios de uso de contas de luz, água e esgoto como comprovantes de residência falsos emitidos por servidores públicos.

Qual é a punição para os eleitores

Caso comprovadas as irregularidades, os eleitores podem ser enquadrados nos artigos 289 e 290 do Código Eleitoral, com penas de 2 a 5 anos de prisão mais multa.