ANA BOTTALLO

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Elsevier decidiu retratar —ou seja, “despublicar”— desde outubro ao menos 34 artigos científicos que saíram em um dos seus periódicos, o Stoten (Science of the Total Environment). E essa lista pode aumentar, pois outros 13 estão sob investigação, segundo a plataforma Retraction Database.

O motivo, de acordo com a editora, foi a constatação de informações fictícias. Ainda segundo a Elsevier, no processo de submissão, os autores indicaram pareceristas para as revisões dos artigos, mas os dados apresentados, como contas de emails, eram falsos. Um dos revisores disse à Folha de S.Paulo que não tinha ideia de que seu nome havia sido usados na avaliação dos estudos.

Em comum, os 47 artigos têm como autor correspondente Guilherme Malafaia, do Instituto Federal Goiano, na cidade de Urutaí, a 143 km de Goiânia. O pesquisador nega a acusação e disse que não teve espaço para ampla defesa durante o processo.

Malafaia disse à reportagem que foi procurado em julho por um representante da equipe de ética da Elsevier que solicitou informações da origem dos emails de revisores sugeridos para os 47 artigos. Foi dado um prazo de resposta de 14 dias.

Em resposta, o biólogo afirmou que pediu mais informações, como quais seriam os pareceres considerados fictícios pela editora, e os dados da investigação.

A Elsevier respondeu que três nomes, Michael Bertram, Olga Kovalchuk e Graham Scott, apareciam na lista de revisores sugeridos, porém todos confirmaram à editora desconhecer os endereços de emails apresentados. A Elsevier, então, solicitou uma explicação de Malafaia sobre a origem dos endereços e, se usou uma fonte pública, para fornecê-la.

Segundo o pesquisador, ele encontrou os três endereços em uma base científica pública chinesa chamada CNKI (Infraestrutura Nacional de Conhecimento da China, em inglês). Após a comunicação da Elsevier, ainda de acordo com ele, não foi possível repetir os passos para obter os emails por problemas de acesso à sua conta, que teria sido hackeada, impossibilitando a comprovação de origem.

Bertram disse à Folha de S.Paulo não ser detentor da conta de gmail indicada e que só teve conhecimento do caso em maio, quando um editor da Elsevier o procurou perguntando se aquelas informações eram verdadeiras. O pesquisador afirmou não conhecer nem Malafaia nem os demais autores dos artigos investigados. Procurados, os demais revisores não responderam à reportagem.

Malafaia se disse vítima de um processo editorial falho e alegou que os editores deveriam ser os responsáveis por verificar a autenticidade dos emails dos revisores sugeridos.

“Por que os editores, que são os responsáveis por todo o processo editorial, não estavam envolvidos nisso?”, questiona.

O brasileiro afirmou ter pedido o acesso ao portal de manuscritos do periódico durante a investigação, o que o impediu de baixar os arquivos referentes ao processo editorial.

De acordo com a Elsevier, um dos editores da revista chamou a atenção da equipe de integridade em pesquisa e ética de publicação para os artigos em questão. Esse grupo, por sua vez, abriu uma investigação.

“Seguindo o processo do Cope [Comitê de Ética em Publicação], a investigação descobriu endereços de email fictícios para certos revisores sugeridos pelos autores e, portanto, a decisão foi de retratar os artigos”, declarou a editora.

Ainda segundo a editora, suas publicações mantêm altos padrões de rigor e ética para proteger a qualidade e integridade de pesquisas.

“Nosso objetivo é prevenir quaisquer casos que possam potencialmente comprometer a integridade do registro científico e a confiança na pesquisa”, acrescentou.

O periódico Stoten é voltado para pesquisas ambientais e suas relações com as pessoas. Com um fator de impacto elevado, ele teve sua avaliação suspensa temporariamente em outubro pela plataforma Web of Science, que concentra periódicos científicos internacionais, devido a “suspeitas acerca da qualidade do conteúdo publicado”.

Em geral, para publicar um artigo científico, o grupo de pesquisa envia a um periódico um manuscrito, que primeiro é avaliado por um editor para identificar qual a área ou o tema principal do trabalho. Em seguida, ele o encaminha para dois (ou três, no caso de divergência de pareceres) revisores, especialistas na área daquela pesquisa.

Os revisores analisam o conteúdo da pesquisa e podem sugerir modificações ou identificar erros na metodologia. Depois, com os pareceres deles em mãos, o editor dá a decisão final se o artigo deve ser aceito, aceito com modificações ou rejeitado.

Uma investigação mostrou que, assim como outros periódicos publicados pela Elsevier de áreas próximas, o Stoten é considerado um “papermill journal” —favorece a quantidade, não a qualidade dos artigos. Em sua página, são indicados cinco dias para uma avaliação inicial do artigo, 82 dias para revisão até o aceite e cinco dias, após a decisão, para publicação —a média para revistas de renome é de seis a oito meses, e não há nenhuma garantia de aceite de início.

Em 2020, um artigo que supostamente apontava o uso de amuletos de pedra como forma de prevenção contra a Covid foi retratado na revista após críticas de cientistas e por conter informações falsas sobre o vírus. O editor do artigo foi o químico espanhol Damiá Barceló, o mesmo que editou a quase totalidade dos artigos retratados de Malafaia.

Em julho de 2023, após uma investigação do jornal El País, o governo espanhol iniciou uma investigação contra Barceló e outros quatro pesquisadores por supostamente manipularem o seu local de filiação para uma universidade da Arábia Saudita em troca de dinheiro –o que fez com que a instituição subisse no ranking da Clarivate de instituições com maior número de citações por sete anos consecutivos.

A partir dos dados obtidos pelo site da própria Clarivate, foi possível verificar que o químico, de fato, se associava à Universidade de King Saudi de 2016 a 2022, embora fosse, no período, diretor do Instituto Catalão de Pesquisas em Água. Em seu perfil acadêmico, Barceló tem mais de 1.600 artigos científicos publicados.

Barceló e Malafaia foram coautores em diversas pesquisas. Durante o processo investigativo, Malafaia disse que solicitou ajuda ao editor para que pudesse provar a sua inocência, conforme emails compartilhados com a reportagem pelo próprio pesquisador.

A Folha de S.Paulo tentou contato com Barceló para saber sobre as circunstâncias da sua associação com Malafaia e o caso em questão, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.