SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na Itália medieval, Trotta di Ruggiero desafiou as proibições impostas ao seu gênero e se tornou médica, desenvolvendo pesquisas sobre o corpo feminino e remédios à base de ervas para tratar cólicas menstruais e as dores do parto. Nos séculos posteriores, seus conhecimentos foram condenados ou atribuídos a homens, motivo pelo qual até hoje não se sabe ao certo quais pesquisas são de sua autoria.
É dessa ligação entre mulheres contestadoras e plantas proibidas que trata “Venenosas, Nocivas e Suspeitas”, exposição em cartaz no Centro Cultural Fiesp. Usando inteligência artificial, a artista Giselle Beiguelman criou retratos de cientistas e artistas ligadas à botânica para contar suas histórias, como é o caso de Di Ruggiero.
Beiguelman também recriou desenhos em movimento de ervas com propriedades medicinais ou alucinógenas. Assim como as mulheres, as plantas foram banidas por desafiarem, de alguma forma, a ordem moral vigente em diferentes momentos da história. “A exposição quer restaurar, de alguma maneira, a presença dessas mulheres através de suas estéticas e suas pesquisas”, diz a artista, que também é crítica de arte e professora da Universidade de São Paulo.
O retrato de Di Ruggiero, por exemplo, é menos realista e mais próximo a uma pintura, fiel às representações de pessoas feitas na Idade Média. Seu rosto é coberto das ervas que utilizou para criar remédios. Já o rosto de Maria Sibylla, naturalista e ilustradora científica alemã que viveu entre 1647 e 1717, aparece emoldurado por iconografias de insetos.
Seu olhar é destemido, apesar de cansado, um provável efeito colateral de sua trajetória. Aos 52 anos, embarcou em uma expedição ao Suriname acompanhada da filha, após largar o marido opressor. Publicou livros ilustrados de insetos, sem ser reconhecida em vida, e seu trabalho foi criticado no século 19 devido às suas descrições metafóricas. Sua obra foi redescoberta anos depois por pesquisadoras feministas.
“Vivemos em uma cultura etarista e misógina”, diz Beiguelman, ao narrar suas dificuldades em conseguir que a inteligência artificial representasse mulheres de 50 a 80 anos sem estereotipá-las. Algo semelhante aconteceu quando a artista criava as pinturas artificiais de plantas como a beladona, considerada tóxica apesar de seus efeitos sedativos, a cannabis, usada para a produção da maconha mas que também tem usos medicinais, ou a papoula, que dá origem às drogas opioides.
“Driblar a censura algorítmica foi difícil, porque trabalhei com plantas que ainda são tratadas como infrações ilegais. Quando você escreve cogumelo na IA, o sistema já alerta que você pode estar infringindo as regras de uso.”
Beiguelman, convidada pela OpenAI para integrar o grupo de criadores que está testando o Sora, ferramenta para a criação de vídeos, se deparou com outra questão ética enfrentada por artistas que trabalham com IA, por vezes acusados de plágio.
“Essa é uma discussão que vem desde a introdução da máquina de escrever e da fotografia”, diz. Monteiro Lobato, um dos primeiros escritores a publicar um livro inteiramente digitado no Brasil, chegou a ter sua autoria questionada na época porque supostamente não seria possível saber se a obra era de fato sua, dado que não havia sido escrita à mão, lembra.
“A fotografia demorou a ser considerada uma forma de arte porque ela também tem uma mediação tecnológica contundente. Não existe arte sem tecnologia. A arte não brota por geração espontânea. Toda arte tem um processo de mediação”, diz.
“O que particulariza essas artes eletrônicas e digitais, assim como a fotografia e o vídeo, é que elas problematizam a tecnologia no campo estético. Nem tudo feito com inteligência artificial é arte, assim como nem todo texto digitado é literatura.”
No seu caso, a IA possibilitou que fotografias do passado, que nunca existiram, fossem criadas para dar às mulheres cientistas sentimentos que lhe foram negados em sua época, além de prestar homenagem a legados que demoraram a serem reconhecidos.
Entre as obras, a exposição exibe plantas verdadeiras que dão cheiro àquelas emolduradas, e a convivência entre os retratos e as ervas provocam a imaginar se um mundo sob a rédea feminina teria sido oposto a intelectualidade masculina dominante que, ao longo dos séculos, difundiu que a tecnologia deveria dominar a natureza em prol do avanço civilizatório.
“O pressuposto de que essas definições de natureza e cultura são opostas é talvez uma das maiores heranças coloniais”, afirma Beiguelman. A relação é de reciprocidade, e não de divisão.
VENENOSAS, NOCIVAS E SUSPEITAS
– Quando De terça a domingo, das 10h às 20h. Até 20/04
– Onde Galeria de Fotos do Centro Cultural Fiesp -av. Paulista, 1313
– Preço Gratuito
– Classificação Livre