LEONARDO SANCHEZ

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Há dois anos, um baque atingiu a cinefilia paulista, quando a notícia de que o anexo do Espaço Augusta de Cinema poderia fechar devido à especulação imobiliária. Meses depois, outro susto -o banco Itaú, patrocinador de longa data, estava retirando seu logo da fachada do cinema, após fechar salas pelo país.

Os episódios ilustram a situação de instabilidade que se abate sobre os cinemas do país -e não só os de rua. Serve ainda de combustível para uma longa querela entre agentes do setor, que vêm instando o Ministério da Cultura e a Ancine, a Agência Nacional do Cinema, a olharem com mais cuidado para áreas além da produção cinematográfica.

Em especial a partir da pandemia de Covid-19, exibidores de todo o país vêm pedindo socorro financeiro ao Estado. Festivais e mostras de cinema também se mobilizam, criando uma sensação generalizada de que a cadeia produtiva do cinema brasileiro não vem sendo contemplada como um todo na hora de liberar recursos como os do FSA, o Fundo Setorial do Audiovisual.

“Nossa luta hoje é inglória, porque mostra a necessidade que todos têm de dinheiro público -a produção, a distribuição e a exibição. E quem disser que não está mentindo”, diz Adhemar Oliveira, que administra o Espaço Augusta.

Sua afirmação encontra eco na de Marcos Barros, presidente da Abraplex, a Associação Brasileira das Empresas Exibidoras Cinematográficas Operadoras de Multiplex. Segundo ele, também fundador da Cinesystem, há salas de grandes redes que operam de forma deficitária. Com o acúmulo de dívidas, há até quem deixe o cinema aberto por não conseguir bancar as custas do encerramento das atividades.

“Estamos ficando atrás do resto do mundo. Hoje a gente só cresce dentro do shopping, e nem eles estão crescendo direito. Precisamos destravar o endividamento que adquirimos na pandemia, numa luta com o Ministério da Cultura e a Ancine para facilitar o acesso a recursos”, afirma Barros.

O executivo diz que há linhas de crédito disponíveis, com juros subsidiados. O problema é que o acesso a elas é dificultado pelo endividamento do setor, que não consegue se planejar para pagar os empréstimos enquanto o público não retornar em massa às salas -em 2023, houve 36% a menos de espectadores do que em 2019. A expectativa é que a retomada ao patamar pré-pandêmico aconteça só em 2026.

“O Ministério da Cultura está muito lento e centrado em linhas que não são propriamente para o cinema comercial. Temos bilhões jogados fora, porque se produz muito filme sem haver uma contrapartida, uma obrigação de retorno. E não falo em dinheiro, mas em crescimento de mercado”, acrescenta.

Este é um discurso frequente, de que se produz demais sem pensar para onde escoar os curtas e longas. A Lei Paulo Gustavo é outro mecanismo na mira de exibidores, por concentrar, em alguns estados, recursos na produção e em empresas consolidadas. A regulação do VoD, as plataformas de streaming onde boa parte do conteúdo vai parar, é outro debate que parece paralisado.

Dados da Ancine indicam que, das 10.905 produtoras independentes do país, 4.980 estão nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Já as exibidoras são 284, responsáveis por administrar 3.541 salas -12% delas nesses dois municípios.

Em paralelo, o governo Lula decidiu rever repasses de fomento à cultura previstos na Lei Aldir Blanc e vai cortar R$ 1,3 bilhão ainda neste ano, apurou a Folha. A medida deve ser incluída no pacote de contenção de gastos do ministro Fernando Haddad, da Fazenda, com impacto também nos próximos anos.

Na semana passada, uma carta assinada por dez entidades endereçada ao presidente Lula engrossou o coro de descontentamento, listando como demandas a criação de linhas de produção mais plurais e de mecanismos para combater a concentração de recursos.

Agentes do setor ouvidos em anonimato falam em fragilidade e incapacidade de priorização no Ministério da Cultura. Há concordância de que houve melhora depois dos quatro anos de Jair Bolsonaro, embora o colegiado da Ancine do ex-presidente, que eles dizem ser voltado demais a resultados de mercado, tenha sido mantido. Ainda assim, a palavra lentidão é usada com frequência.

No caso das mostras, no ano passado, houve grande alarde quando a pasta tentou exigir que os eventos tivessem acessibilidade integral. Renata de Almeida, da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, vê valor na proposta, mas diz que ela é impraticável diante dos orçamentos com os quais o setor trabalha e de sua própria natureza, com cada filme tendo um número muito limitado de sessões.

“Tem coisas importantes a se fazer, mas de forma progressiva. Claro que eu sou a favor da acessibilidade, mas no cenário atual chegar a 100% de uma edição para outra é algo impossível. Quem sabe daqui a alguns anos”, diz.

Na dianteira do debate, o Fórum dos Festivais, que reúne eventos de todo o país, tem pressionado o governo a retomar linhas de crédito para o setor desde 2019. A liberação de dinheiro público, hoje, aconteceria por meio de uma “política de balcão”, como diz a diretora da entidade, Josiane Osório. “Para alguns festivais eles põem dinheiro, mas de uma forma não republicana. Precisamos todos sentar e montar um plano em conjunto”, diz ela.

No mês passado, numa reunião com a ministra da Cultura, Margareth Menezes, promessas de editais foram feitas. Elaborados pelo Fórum, os documentos ainda não foram avaliados, afirma Osório. Já a Ancine, diz ela, tem ignorado pedidos de reuniões feitos por email, telefone e presencialmente.

Procurados, o Ministério da Cultura e a secretária do audiovisual, Joelma Oliveira Gonzaga, não se manifestaram. A Ancine, por meio de sua assessoria de imprensa, informou que esteve na última reunião entre o Fórum e a pasta e que “espera ampliar essa ação de fomento no próximo ano, de acordo com a realidade orçamentária”.

Marcos Barros, da Abraplex, elogia as ações da Ancine junto a exibidores de cidades pequenas. Ele afirma que a liberação de recursos para ampliar o parque exibidor para além das capitais tem dado frutos, e frisa a importância da política, em especial quando comparamos o mercado brasileiro ao estrangeiro.

Segundo a agência, 84 milhões de brasileiros vivem em municípios sem salas de cinema. Temos, assim, 58 mil habitantes por sala no Brasil. Para efeito de comparação, a relação na Argentina é de 49 mil habitantes por sala; no Chile, 39 mil; no Uruguai, 36 mil; no México, 17 mil, e na Coreia do Sul, 15 mil.

A Secretaria do Audiovisual e o Conselho Superior do Cinema ainda elaboram o Plano de Diretrizes e Metas para o setor, que deve vigorar entre 2025 e 2034 e que traça políticas a serem implementadas em toda a cadeia do audiovisual. O último plano do tipo expirou em 2021 e, neste meio tempo, houve uma retração de mercado significativa, agravada, mas não inteiramente justificada, pela pandemia.

Fundador do Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, que chegou ao fim no domingo com menos patrocinadores que o habitual, André Fischer diz que a saída para mostras e festivais é pensar em alternativas que os tornem menos dependentes de investimento público. O Mix só pôde acontecer porque Fischer conseguiu apoio de empresas como o Scruff, aplicativo de pegação gay, e de instituições como o MIS, o Museu da Imagem e do Som.

“Muitos dos filmes nacionais são vistos só em festivais, porque não têm espaço no circuito comercial, e além disso temos um papel importante de formação de plateia”, diz ele, ressaltando o vínculo –e as crises, como a de público em longas brasileiros– que une todos os agentes do audiovisual. Fischer atualmente trabalha num doutorado sobre a sustentabilidade financeira e ambiental dos festivais de cinema.

“Temos que discutir fontes de financiamento, mas não só. Temos que discutir o sentido do festival hoje, que não pode ser uma coisa nostálgica”, diz. “O festival é encontro, é uma experiência coletiva, como as salas de cinema.”