PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – No próximo dia 8 de dezembro, durante a missa de reinauguração de Notre-Dame, o arcebispo de Paris, Laurent Ulrich, pronunciará duas palavras solenes: “Órgão, acorda.” Então, o organista Thierry Escaich executará no teclado as primeiras notas desde o incêndio que quase destruiu a catedral, cinco anos atrás. Nessa hora, a brasileira Luciana Lemes, 29, deve sentir uma emoção especial: ela é uma das responsáveis pela afinação do instrumento produzido em 1868.

“Eu queria muito estar lá para ver isso, mas… com certeza, com certeza vai ser emocionante”, disse Luciana —já emocionada— à Folha, de sua casa em Malemort-du-Comtat, cidadezinha de 2 mil habitantes no sul da França.

A improvável história que levou a brasileira a cuidar do órgão de tubos de Notre-Dame começou em 2008, quando ela tinha 13 anos e era estudante de piano em Lorena (SP), no Vale do Paraíba. “Incentivada pela mãe”, como diz, Luciana frequentava o coro da catedral de Nossa Senhora da Piedade.

Um dia lhe contaram que a igreja tinha um órgão histórico, do século 19, que precisava de restauração e não havia quem pudesse fazê-lo. “No Brasil só havia um ou dois ateliês. Aquilo mexeu comigo. Pensei: que sacanagem não ter como restaurar.”

O interesse levou Luciana a concluir a faculdade de música com um trabalho sobre o francês Aristide Cavaillé-Coll (1811-1899), o mais famoso construtor de órgãos do século 19. Seus cerca de 500 instrumentos estão espalhados pelo mundo, entre eles o de Lorena e o de Notre-Dame.

Luciana tornou-se organista do Santuário Nacional de Aparecida, a 20 km de Lorena. De organista (música), virou também organeira, especialista na restauração de órgãos de tubos. Depois de um período de especialização nos Estados Unidos, em 2021, decidiu tentar a sorte na França.

“Minha jornada foi sempre a de conseguir a experiência necessária para retornar ao Brasil e ajudar o meu país. Em nenhum momento eu pensei que fosse acabar no projeto de Notre-Dame. Fiquei muito chocada quando teve o incêndio.”

Luciana conseguiu emprego na Quoirin, renomada oficina de órgãos. Acabou se apaixonando por Raphaël, filho do fundador da empresa, também organeiro. O casal teve um filho e fixou residência perto de Avignon.

Em 2022, a empresa foi chamada para trabalhar na restauração do órgão de Notre-Dame, um instrumento complexo, com 8.000 tubos. Desde então, a brasileira teve o raro privilégio de trabalhar em diversos períodos dentro da catedral em obras. “Ainda não consigo assimilar que fiz parte disso, tenho flashbacks de entrar na catedral, subir a escadaria.”

Seu trabalho —que exige equipamento especial de proteção devido à poeira tóxica de chumbo deixada pelo incêndio— foi da desmontagem à remontagem, afinação e harmonia.

“É como se cada tubo do órgão fosse uma pessoa, que você ensina a cantar e depois afina, faz com que dê a nota que você está esperando, com o timbre necessário. São horas de trabalho duro.”

Ser ao mesmo tempo organista e organeira, segundo Luciana, não é indispensável, mas ajuda. O que mais dificultou o trabalho foi o barulho constante da obra. “A gente trabalhava junto com os outros operários, com barulho de picareta, de martelo, nossa, foi muito difícil. A gente tentava se concentrar ao máximo, porque a reabertura estava prevista havia muito tempo para 8 de dezembro.”

Semanas atrás, o organista titular Thierry Escaich pôde entrar na catedral e experimentar pela primeira vez o console do órgão. Ele ainda não estava totalmente pronto, mas Escaich qualificou o som de “genial”.

Luciana diz sentir orgulho pelo percurso que a levou da humilde igreja de Lorena ao que é considerado o ápice em sua profissão, a restauração de um dos órgãos mais célebres do planeta. “Quero mostrar que é possível, sabe? É só correr atrás. O mundo é tão pequenininho. Tem que tentar.”