BUENOS AIRES, AERGENTINA (FOLHAPRESS) – O minuto inicial do primeiro episódio de “Senna” não deixa mentir -esta é uma das grandes apostas da Netflix não apenas no Brasil, mas no mundo todo. A vinheta da gigante do streaming foi reformulada especialmente para a série, com o “N” vermelho acoplado ao farol de um carro de corrida e seu característico som de “tudum” misturado aos roncos de um motor.
Esse detalhe, somado à opulência do que se vê em cena logo em seguida, traduzem os dados de orçamento que a empresa não tem costume de divulgar. Fato é que não se gastou pouco para narrar a história de um dos maiores ídolos do esporte brasileiro, Ayrton Senna.
Carros da Fórmula 1 foram cuidadosamente recriados, sets de filmagem foram erguidos no Brasil, na Argentina e no Uruguai, e uma equipe de efeitos especiais espalhada pelo mundo foi convocada para as cenas de corrida, replicando a adrenalina que o esporte exige.
“Este é um projeto que a gente acalenta há anos, porque era nosso desejo produzir uma obra brasileira que tivesse uma repercussão gigante em todo o mundo, a maior do nosso audiovisual”, disseram os produtores Caio e Fabiano Gullane numa rápida pausa durante as filmagens no Autódromo de Buenos Aires, em agosto do ano passado.
“Cada projeto é um protótipo, e este é ainda mais, por causa das dimensões. É uma série que vai levar a cinematografia e o talento audiovisual do brasileiro e dos sul-americanos para fora”, acrescentaram, para uma dúzia de jornalistas brasileiros, latinos e europeus -um sinal precoce da vontade de fazer a série ser internacional.
As cenas gravadas naquele dia eram corridas que deveriam fazer as vezes de prêmios disputados por Senna em 1990 nos autódromos de Villeneuve, no Canadá, de Silverstone, na Inglaterra, e de Spa-Francorchamps, na Bélgica.
Interlagos também estava nos planos, todos recriados numa mesma pista graças às várias telas verdes que a cobriam, possibilitando à equipe de efeitos visuais que alterasse vegetação, arquibancadas e placas de patrocinadores.
Posicionado próximo a uma curva do autódromo, o grupo acompanhava uma cena de ultrapassagem. Os roncos altos dos motores chegavam à área de segurança primeiro até que, por alguns poucos segundos, era possível avistar os dois carros de Fórmula 1 perigosamente se enfrentando, a cerca de 300 quilômetros por hora. O duelo se repetia várias e várias vezes, até chegar ao take perfeito.
Não houve velocidade equivalente na concepção da cena, porém. Diretor da série, Vicente Amorim conta agora, com os seis episódios já finalizados, que cada corrida era projetada plano a plano, com cerca de um ano de antecedência. Um rascunho digital era criado no computador para que departamentos como direção de arte e efeitos especiais estivessem alinhados, cientes do que seria feito no local e o que entraria na pós-produção.
“Assim o cheiro de borracha queimada imprime na tela”, diz ele. “Nada foi feito na base da tentativa e erro, houve muito planejamento e trabalho. O que dá autenticidade para as corridas é o fato de que todas aconteceram de verdade. Os carros estavam na pista e, ao fundo, outros carros eram inseridos digitalmente.”
Também foi demorada a busca pelo ator que viveria Senna. A tarefa foi parar nas mãos de Gabriel Leone, que coincidentemente emendou um filme sobre automobilismo, “Ferrari”, seu primeiro trabalho internacional, às gravações de “Senna”. Mas se no set estrangeiro ele pôde aprender o básico da direção de carros de corrida, no nacional não pôde acelerar, por questões de segurança.
Nos planos abertos, os carros são guiados por dublês. Nos fechados, Leone senta no banco do piloto e, com um painel de LED ao fundo, finge que dirige. Mas o faz de conta foi o menor de seus problemas. O ator, afinal, passa boa parte da série de capacete, e precisou usar apenas o olhar vazado pelo visor para expressar sentimentos como tensão, alegria, fúria, medo, tristeza e frustração.
“Foi um grande desafio, mas enquanto ator foi algo maravilhoso. Os closes, os olhos, são o coração das corridas. Por isso prestei muita atenção nos olhos do Ayrton [durante o processo de pesquisa], porque é ali que está a essência dele”, diz Leone.
Essência que foi capaz, entre os anos 1980 e 1990, de unir brasileiros em frente à televisão. Como poucos, Senna foi quase uma unanimidade, capaz de levar um esporte tão elitizado quanto as corridas para os lares de brasileiros de qualquer classe social, credo, cor, gênero e região.
Segundo Leone, “Senna” estreia num momento em que o Brasil precisa novamente se unir, se encontrar enquanto um só povo. “Ele foi uma grande unanimidade brasileira, o nosso grande ídolo, para além do esporte. Pensando a nível político-social, em tudo o que nós vivemos nos últimos tempos, ele é uma figura para relembrarmos.”
Mesmo que Senna tenha feito tremular a bandeira nacional em todos os cantos do país, o automobilismo não vive exatamente uma onda de popularidade entre os brasileiros. Assim, para ganhar tração entre as massas, “Senna” precisou mergulhar nos dramas pessoais de seu protagonista.
Trouxe também personagens como o locutor Galvão Bueno, a irmã Viviane Senna, os compatriotas Nelson Piquet e Rubens Barrichello, o rival Alain Prost e os amores Lilian Vasconcelos, Xuxa Meneghel e Adriane Galisteu.
Para essa ala mais pessoal, Amorim teve a ajuda de Júlia Rezende, codiretora que diminuiu a testosterona da série. Há grande destaque para o primeiro casamento do piloto, bem como para os relacionamentos com as duas apresentadoras. Também entrou em cena uma repórter para guiar toda a trama, interpretada pela inglesa Kaya Scodelario, filha de brasileira.
Ao longo do processo de pesquisa, Amorim e Rezende tiveram ajuda de Viviane e de outros membros da família Senna, que estiveram envolvidos na série desde seus estágios iniciais. Questionado se a proximidade não atrapalhara, o diretor diz que não, que não houve imposição de “amarras” por parte deles.
Tanto no set de filmagem, quanto neste momento de lançamento, porém, a preocupação da equipe em ressaltar o lado heroico, de colar à série a aura de grande homenagem ao tricampeão da Fórmula 1, é evidente. Ainda assim, há espaço para vermos um Senna temperamental, impulsivo, por vezes arrogante.
Para Leone, não poderia ser diferente. “Na trajetória do herói, se ele não tem falhas, pontos de contato com a humanidade, ele se distancia da gente. Entra num lugar hierárquico de estar acima. Ayrton era o oposto disso. Ele era absolutamente humano, e acho que, para além das vitórias, era isso que nos aproximava dele.”
*O repórter viajou a convite da Netflix