SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O projeto na Câmara dos Deputados sobre a anistia aos participantes dos atos golpistas do 8 de janeiro de 2023 tramita em conjunto com propostas mais abrangentes, que poderiam englobar as condenações da Justiça Eleitoral que deixaram o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) inelegível por oito anos.

Para especialistas, a iniciativa provavelmente teria a constitucionalidade contestada e seria levada ao STF (Supremo Tribunal Federal).

Além disso, embora exista previsão de debate sobre o tema em comissão especial anunciada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o andamento do projeto tende a sofrer resistência maior após o atentado da semana passada, quando um bolsonarista se explodiu na praça dos Três Poderes.

O cerco a Bolsonaro também foi intensificado nesta semana pela operação da PF que prendeu 4 militares e 1 policial federal. A PF diz ter descoberto um plano de golpe de Estado que incluía o assassinato do presidente Lula (PT), de seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), e do ministro Alexandre de Moraes, do STF.

Depois dos episódios, parte dos parlamentares, inclusive bolsonaristas, admitiu o “enterro da anistia”. Há, entretanto, políticos da oposição que ainda defendem o perdão geral como condição para, nas palavras deles, o país seguir adiante.

O PL 2.858/2022 tramita na Câmara com seis propostas apensadas. Elas tratam a anistia a partir de diferentes abordagens, entre as quais o perdão a punições da Justiça Eleitoral e a modificação dos artigos que tratam dos crimes de abolição violenta do Estado democrático de Direito e de golpe de Estado.

Para Gustavo Sampaio, professor do departamento de direito público da UFF (Universidade Federal Fluminense), a discussão pode, a depender de como ocorrer, beneficiar Bolsonaro nas condenações impostas pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

Ele aponta que o texto, com seus apensados, “prevê, por exemplo, que multas impostas pela Justiça Eleitoral sejam anuladas e que causas de inelegibilidade sejam cessadas”.

Uma das propostas que abrange sanções da Justiça Eleitoral é do deputado José Medeiros (PL-MT).

Ela prevê a anistia a todos que, a partir de 1º de junho de 2022, tenham se manifestado, “por meio de atos individuais ou coletivos, ou tenham financiado ou participado de tais manifestações e protestos, relacionados às eleições de 2022 e temas a ela pertinentes”.

Bolsonaro se tornou inelegível por oito anos em decisão do TSE de junho de 2023. O tribunal considerou ter havido abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação em reunião com embaixadores estrangeiros em julho de 2022 na qual o então presidente fez afirmações falsas e distorcidas sobre o processo eleitoral.

O ex-mandatário também foi condenado pelo TSE por abuso de poder no 7 de Setembro de 2022.

Segundo Álvaro Palma de Jorge, professor da FGV Rio especialista em temas relacionados ao STF e direitos fundamentais, o artigo 3º da proposta apensada pode ser utilizado para tentar beneficiar Bolsonaro, ainda que os textos dos PLs estejam amplos demais.

O trecho fala em anistia para quaisquer sanções administrativas e abrange sanções penais e multas aplicadas por qualquer Poder, “inclusive todos os órgãos judiciários”, mesmo que decorrentes de descumprimento de decisões judiciais ou de outros órgãos.

Na interpretação de Diego Nunes, professor de direito penal da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), os parlamentares até podem extrapolar o texto do PL principal para conseguir interferir em condenações do TSE.

A ação, entretanto, aumentaria a chance de a proposta ser interditada pelo Supremo caso a corte seja acionada. Ele lembra que anistias não podem beneficiar um único indivíduo e devem delimitar um período de tempo.

“Se a anistia é geral e abstrata, eu não posso fazer uma tão circunscrita que só atinja Bolsonaro. Esse seria um caso claro em relação ao qual o STF poderia ser chamado a intervir”, diz.

TRAMITAÇÃO DO PROJETO DE LEI NA CÂMARA

De autoria do deputado Major Vitor Hugo (PL-GO), o PL principal trata da concessão de anistia a todos os que tenham participado de manifestações em qualquer lugar do território nacional de 30 de outubro de 2022 à data em que a lei entrar em vigor.

A justificativa é que os atos ocorridos após o segundo turno das eleições teriam sido legítimos e fruto da indignação de cidadãos frente ao processo eleitoral.

Ao texto estão apensadas outras propostas, cujos autores são, em sua maioria, do partido de Bolsonaro. Eles falam de decisões que teriam desrespeitado princípios jurídicos como a individualização das condutas e o direito ao contraditório.

Um deles, de Alexandre Ramagem (PL-RJ), sugere alterar os artigos sobre abolição violenta do Estado democrático de Direito e golpe de Estado. Outro, do deputado Hélio Lopes (PL-RJ), prevê o não pagamento de multa por parte de investigados com poucos recursos.

Antes de Lira determinar a criação de uma comissão especial, o projeto estava na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça).

A então relatora da comissão, deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP), havia emitido parecer contrário às propostas sob o argumento de que havia nelas inconstitucionalidade, injuridicidade e má técnica legislativa.

Sâmia, entretanto, deixou de ser membro da comissão, e o projeto foi devolvido à CCJ no início de abril. Em junho, o deputado Rodrigo Valadares (União -SE) foi indicado como novo relator.

Valadares deu parecer favorável à anistia, propondo substitutivo que juntava propostas do PL original e seus apensados.

Na justificativa de voto, o parlamentar diz que os ataques golpistas do 8 de janeiro ocorreram em razão de indignação decorrente do fato de que muitos foram “derrotados em uma disputa eleitoral pela primeira vez, devido ao aumento do interesse da nossa população pela política”.

No texto, ele compara a morte de Cleriston Pereira —morto na Papuda após mal súbito— à do jornalista Vladimir Herzog, torturado e assassinado durante a ditadura militar. Também equipara a prisão dos manifestantes a atos praticados pela SS, organização paramilitar nazista.

Depois do atentado no último dia 13, na sede dos Três Poderes, Valadares disse ao jornal Folha de S.Paulo rejeitar a interpretação de que o caso tenha impacto sobre a tramitação da proposta na Câmara.