RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – “Acho que um bom artista tem que saber cozinhar”, afirmou Moisés Patrício em conversa com Solange Borges no livro “Desreceitas: Dez Processos Artísticos”, idealizado pela artista e chef Rose Klabin e organizado por Rodrigo Villela.

Patrício é categórico, mas é complexo qualificar um prato ou obra de arte. O gosto, estético ou do paladar, é construído por muitas camadas de memórias pessoais, vivências sensoriais e referências históricas e culturais.

Esse repertório, que transforma a experiência de cada um, é apenas um entre muitos conceitos que atravessam as entrevistas, conduzidas por Klabin e convidados, sobre os encontros entre o universo da gastronomia e da arte. Ela escolheu nove artistas que conversaram, enquanto cozinhavam, com psicólogos, agricultores, poetas, designers, cineastas e chefs.

A ideia inicial era reunir receitas de artistas, mas o resultado é uma instigante publicação sobre processos criativos. O décimo, sugerido no título, é o da própria Klabin. “O livro é a minha obra, um arquivo de toda pesquisa”.

De um lado temos criativos que usam o próprio alimento como matéria e símbolo, propondo discussões políticas, sociais, econômicas, psicológicas, ambientais e espirituais. Do outro, artistas que não apresentam uma relação direta com a comida, mas ressaltam métodos e reflexões ligados à criação artística e culinária.

Os gestos em comum passam por experimentos visuais e sensoriais; pela transmutação e ressignificação de imagens, objetos e substâncias; pela consciência do tempo e das dinâmicas de ecossistemas; pelo ritual e repetição cotidiana; pela disciplina e liberdade.

O primeiro interesse geralmente é plástico. Muitos compõem pratos como elaboram suas telas e esculturas. “Cozinhar para mim é uma espécie de pintura expandida, porque você tem que trabalhar a composição, as camadas e os tempos”, sugere Patrício.

Heloisa Hariadne tem fome de cores e sensações e busca fazer “pinturas suculentas”. Ela reformula a “Roda dos Prazeres”, de Lygia Pape, ao propor um jogo com o imaginário e os sentidos por meio de refeições monocromáticas. A graça está em se surpreender com os diferentes aromas, gostos e crocâncias de uma mesma cor.

Hariadne foi crudívora por alguns meses e garante que a experiência ajudou em seu processo criativo. “Mudou totalmente a minha sensibilidade, meu tato. Senti as coisas com mais profundidade, mais abertura.”

Outra artista apaixonada por verduras e frutas in natura é Sonia Gomes. Ela sempre teve um jeito próprio de não aceitar ou se encaixar em categorias, costumes e convenções naturalizadas ou impostas. Customizava suas roupas, desde a adolescência, e nunca gostou da gastronomia mineira. O problema, ela diz, é que na casa onde cresceu tudo era cozido demais.

Ela queria provar os sabores, tons, texturas, fibras e brilhos dos tecidos e dos alimentos e, por isso, logo aprendeu a fazer também as próprias refeições. Compreendeu que gostava de ingredientes crus com suas “surpresas e composições fantásticas”.

A rebeldia e independência de Gomes, que nega regras ou receitas prontas, também aparecem nas obras e menus de Marcos Chaves e Maria Klabin. “Técnica, conhecimento e história são ferramentas. Isso não significa que você vai ser uma boa artista”, diz Klabin.

“É preciso ter coragem e liberdade”, afirma Chaves. “Às vezes fica uma porcaria!”

Numa mistura de Duchamp e Lacan, ele ficou conhecido por ressignificar imagens e textos. “Tanto a minha relação com a arte quanto com a comida tem foco em transformar os sentidos”, diz.

Ayrson Heráclito ocupa os museus com os ingredientes usados em ebós para falar de espiritualidade e chamar atenção para estruturas de poder dos engenhos coloniais. O açúcar, por exemplo, está ligado não só ao sistema escravocrata, mas também a uma espécie de colonização do paladar, onde “o doce está vinculado ao afeto e ao acolhimento e é, ao mesmo tempo, um problema de saúde pública”, como diz Nati Canto em conversa com Felipe Ribenboim sobre os sistemas que capitalizam o costume alimentar.

“Há uma insistência em dizer como as coisas devem ser feitas, olhadas e experimentadas”, ela afirma.

Não parece à toa que o pão tenha sido a escolha de Canto e Débora Bolzsoni -as duas artistas que expõem críticas sociais com mais afinco. “O pão com manteiga está presente em várias classes sociais, de maneiras diferentes.”, diz Canto. Ela explora o universo gástrico e seus fluxos e entende a comida como algo que passa pela boca, é absolvido e entra em todos os espaços do corpo.

O pensamento sobre as relações entre interior e exterior também permeia o “pãogobó” de Bolzsoni. Símbolo da partilha, o pão representa, aqui, o modernismo brasileiro, um movimento que trabalhou na chave do privilégio e exclusão. E a pergunta que fica é: Quem, afinal, tem acesso a esta arquitetura que protege e ao alimento que nutre?

Ambas as artistas apresentam, ainda, problemáticas ligadas ao gênero. Bolzsoni contesta o fato de a arquitetura ser associada ao masculino e a cozinha ao feminino. Já Canto reforça que a memória afetiva da alimentação remete, na maioria das vezes, à lembrança da avó, não do avô. E que o feminino está conectado ao cuidado e ao doméstico, enquanto a figura do chef profissional está ligada ao masculino, pela frieza da técnica, ganho de capital e ocupação de um lugar público.

“Por isso temos que tomar cuidado com essas palavras que geram categorias e vão se naturalizando.”, diz Canto.

É interessante notar, entretanto, que os homens selecionados são os que mais falam sobre conexão, generosidade e carinho -Patrício, Chaves e Nazareno são puro afeto.

“É difícil comandar uma cozinha sendo mulher, é um ambiente predominantemente masculino e militar”, diz Rose Klabin. “O sistema da arte é igualmente complicado e, talvez por isso, as mulheres adotem uma postura mais política, fogem desse lugar afetivo. Por outro lado, muitos homens artistas querem resgatar essa sensibilidade.”

De fato, aguçar sentidos é fundamental para o trabalho no estúdio e plantar, colher e cozinhar ajuda desenvolver percepções e assimilar possibilidades de transmutação -seja ela física, química, visual, sensorial ou simbólica.

O ateliê e a cozinha são espaços de experimentação, onde é possível olhar para o mundo, e para si, sob diferentes perspectivas. Desviar, dobrar, inverter visões. Respeitar o tempo, aceitar o erro e, às vezes, abraçar o acaso e o improviso. Se alimentar, digerir e produzir algo novo e verdadeiro, pois a comida e arte, como afirma Patrício, “nos conecta porque de alguma forma há coisas que a palavra não dá conta”.

DESRECEITAS: DEZ PROCESSOS ARTÍSTICOS

Preço R$ 260 (294 págs.)

Editora WMF – Coedição

Link https://www.wmfmartinsfontes.com.br/produto/desreceitas-dez-processos-artisticos-2198

Organização Rodrigo Villela e Rose Klabin