SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando foi gravar sua versão de “Essa Tal Liberdade”, pagode do grupo Só Pra Contrariar, Mart’nália não sabia o que fazer. “Falei ‘para onde eu vou com essa música?’”, diz a cantora, que lança um álbum em que canta pagodes dos anos 1990. “Fala de dor, né? ‘Andei errado, pisei na bola.’ Não vou falar isso para ninguém nunca! Não tenho essa dor.”

Última faixa de “Pagode da Mart’nália”, disco lançado nesta quarta, o sucesso do Só Pra Contrariar traz a cantora fora de sua zona de conforto. Muito ligada à MPB, ao samba e à black music, ela canta o pagode acompanhada só por um piano, interpretando a letra sobre alguém que errou num relacionamento e quer o perdão da pessoa amada.

“É careta, né? Para mim, sempre foi, agora e na época. É muita dor. Para quê? Aqueles caras não tinham nem idade para sofrer tanto assim”, diz. Mart’nália não se identifica com o romantismo exacerbado do pagode e nunca foi de ouvir músicas do gênero para lidar com dor de cotovelo. “Sofro já beijando outra.”

Na verdade, Mart’nália nunca gostou de pagode. “Só estou ouvindo agora, não era o que eu ouvia. Não gostava”, diz. “Nem a esses pagodes eu ia. Sempre fui mais Nana Caymmi do que Xande de Pilares. Realmente tinha preconceito, nem prestava atenção. Tinha aqueles sons de teclado fazendo sopro, guitarra. Para mim, era uma agonia. Para nós, músicos, um acinte. Achava tudo igual, nem conseguia distinguir. Mas essas coisas populares vão chegando, um refrão ou outro.”

A ideia do disco surgiu depois que Marcia Alvarez, empresária da cantora há mais de 20 anos, sonhou com Mart’nália cantando “Recado à Minha Amada”, do Katinguelê -música que está no álbum. A artista recusou de cara, mas foi convencida a fazer o projeto.

Revisitar esse repertório dos anos 1990 não mudou sua percepção. “O que pensava na época continuo pensando”, diz. “Quanto mais ouvia, mais eu ficava assim ‘essa não vai dar, essa outra também não vai dar’. Nunca fui fã e, se ficasse ouvindo, aí é que eu não ia gravar mesmo. O papo é muito direto, né? Não é aquela poesia de Vinicius de Moraes, Paulinho da Viola -mas tudo bem, nem tudo precisa ser assim.”

Para o disco, Mart’nália se agarrou no time com o qual trabalhou. Alvarez levantou o repertório com Marcus Preto, com quem divide a direção artística do álbum. Luiz Otávio fez a direção musical, criando arranjos que levassem o pagode ao estilo de samba da Vila Isabel, berço da cantora. Se o pagode é filho do samba, Mart’nália o trouxe de volta para casa.

Esses arranjos e a falta de familiaridade com o cancioneiro resultam num disco inusitado. Mesmo músicas muito conhecidas soam tão diferentes das versões originais que parecem outras. Mart’nália encarou o projeto como um desafio e cantou tudo à sua maneira -com a voz rouca, malandra, e dividindo os versos como uma sambista.

“A gente chegava e já fazia uma base instrumental”, diz. “Eu não sabia a letra, só às vezes a melodia. E não sabia dividir. O pagode tem uma divisão que não sei e nem quero fazer. É picadinho. As palavras são cortadas de uma forma que, para mim, não funcionava. Fiz da minha forma, a partir dos arranjos. Gosto da surpresa.”

O repertório destaca canções mais divertidas do pagode. Entra elas “Coração Radiante”, do Revelação, “Sem Abuso”, do Art Popular, “Clínica Geral”, do Molejo, e “Sem o Teu Calor”, do Exaltasamba. Em “Cheia de Manias”, do Raça Negra, faz um dueto com Luísa Sonza. “Sempre quero uma mulher por perto. E alguém novo, sem aquele ranço [do pagode]. A voz dela é meio brega e sertanejo, mas é meio pop.”

Também chamou dois baluartes da MPB para se sentir mais em casa -Caetano Veloso, com quem canta “Domingo”, do Só Pra Contrariar, e Martinho da Vila, com quem divide os microfones em “O Teu Chamego”, do grupo Raça. “É como se eles abençoassem”, diz.

Os dois, de certa forma, representam a raiz da carreira de Mart’nália. O pai foi quem a introduziu na música, não só nas rodas de samba em casa -foi na banda dele que ela deu os primeiros passos tocando percussão e cantando. E, por sua vez, foi Caetano Veloso quem destravou nela seu jeito próprio de cantar.

Em casa, Mart’nália teve uma infância regada a música, cercada pelos amigos ilustres do pai. Ia às rodas de samba do Cacique de Ramos para ficar “paquerando, enchendo a cara e conversando”.

Também desenvolveu uma paixão pela música soul e funk americana, febre nos bailes black do Rio de Janeiro, de James Brown a Michael Jackson. Era uma época em que não se via com bons olhos a invasão dessa música de fora. “Meu pai ficava puto da vida”, ela diz, rindo. “Frequentei muito baile, sentia um pertencimento. Mas dentro de casa era só música brasileira.”

Esses dois universos deram as bases estéticas para Mart’nália -não é à toa que Djavan, que produziu um de seus discos, é talvez seu artista predileto. Mas até virar cantora, assim como no disco de pagodes, foi necessário um bocado de convencimento.

Mart’nália lançou seu primeiro disco em 1987, quando fazia vocal de apoio em álbuns de Alcione e Fundo de Quintal, entre outros. Gostava de tocar e cantou meio como um favor. Dez anos depois, saiu seu segundo disco, que ela só terminou após um pedido do pai.

Só em 2001 Mart’nália, então vocalista de apoio nas bandas de Martinho e de Ivan Lins, passou a se entender como cantora, quando Caetano Veloso produziu seu álbum “Pé do Meu Samba”. “Ele me pediu para cantar como se estivesse em casa. Só ali descobri que nunca tinha cantado no meu tom. Cantora tinha que ser tipo Gal Costa, atingir as notas mais altas.”

Mas nem assim ela queria essa carreira. Lamentava que estava perdendo os cachês de “backing vocal” para fazer shows próprios esvaziados. Ela atingiu o sucesso de vez com “Menino do Rio”, disco de 2005 produzido por Maria Bethânia. O hit do álbum, “Cabide”, composição de Ana Carolina, nos últimos meses voltou a fazer sucesso em uma montagem com batidas de funk. “Vi as pessoas postando, mas daí fui ouvir e tem ‘quica’, ‘senta’, não quis ouvir mais.”

Mas Mart’nália gostou de ser conhecida por novas gerações -que se identificam com sua fluidez de gênero. Se descobrir um canto menos atrelado à tradição feminina foi um processo lento, no caso da identidade e sexualidade, ela sempre foi como quis.

“Até uns 14 anos, antes de os peitos saírem, eu só andava de shorts e sem camisa, jogava bola. Fui criada assim, ‘deixa a garota’. Hoje tem isso do pertencimento, da aceitação, mas não passei por isso. Só fui saber depois. Não gosto de carregar bandeiras. É meu jeito. Me deixaram ser, fui sendo.”

Ela até estranha quando ouve que é referência para quem se identifica com ela. “As ‘sapatinhas’ novas chegam assim ‘você é meu exemplo’. Olho e fico ‘oi, tem certeza?’”, ela conta. “Não gosto de saia. Boto uma camiseta que me deixa confortável. Quero assim, gosto assim e pronto.”

PAGODE DA MART’NÁLIA

Artista Mart’nália

Gravadora Sony

Produção Marcia Alvarez, Marcus Preto e Luiz Otávio

Onde Disponível no streaming