BRUNO GHETTI
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Chegou a hora. Dois meses depois de sua primeira prova de fogo, na bem-sucedida première mundial no Festival de Veneza, “Ainda Estou Aqui” agora chega para escrutínio do público brasileiro, com sua aguardada estreia nos cinemas do país nesta quinta-feira (7).
Mas se um dos olhos do representante nacional na disputa pelo Oscar mira o público doméstico, o outro continua voltado para o exterior. Na semana passada, começou a circular em revistas norte-americanas especializadas sobre cinema e de grande influência na indústria material de publicidade sobre o filme voltado para os membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Ou seja, votantes do Oscar.
Com uma foto do filme e aspas de elogios de publicações estrangeiras, a peça solicita que o membro considere o longa em sete categorias em específico. O foco maior é, em uma aposta de risco, na de melhor filme do ano, embora logo em seguida venha aquela em que “Ainda Estou Aqui” de fato tem chances mais robustas de ser indicado e talvez até ganhar a de melhor filme internacional. E há também a sugestão para nomeações nas categorias melhor atriz (Fernanda Torres), ator coadjuvante (Selton Mello), direção (Walter Salles), roteiro adaptado (Murilo Hauser e Heitor Lorega) e montagem (Affonso Gonçalves).
“Penso que foi a recepção em Veneza e em outros festivais que acabou gerando as expectativas. Nem nós sabíamos o que poderia acontecer antes da estreia”, diz o cineasta. No festival adriático, o longa saiu laureado com o prêmio de melhor roteiro e com uma excelente aceitação na imprensa. Mas não só, no boca a boca entre o público, também foi, em geral, aprovado.
“Sintomaticamente, a reação generosa em Veneza veio no mesmo ano em que filmes brasileiros como Baby, de Marcelo Caetano, exibido no Festival de Cannes, e Manas, de Marianna Brennand, também em Veneza, entre outros, foram premiados. Uma cinematografia só se torna obrigatória quando filmes vindos de diferentes regiões de um país, feitos por diversas gerações de cineastas, coexistem”, diz Salles.
“Um filme ecoa no outro, e os longas de estreantes oxigenam toda uma cinematografia. Da mesma maneira, filmes de grandes cineastas como Kleber Mendonça Filho e Fernando Meirelles são fundamentais, adensam a reflexão sobre o país e o mundo.”
É a primeira temporada em décadas em que o Brasil tem possibilidades reais de disputar um Oscar de filme internacional. A última vez, quando a categoria ainda se chamava “melhor filme em língua estrangeira”, foi em 1999, quando um longa de Salles concorreu, “Central do Brasil”. Vitorioso no prestigiado Festival de Berlim do ano anterior, o filme emplacou ainda uma histórica indicação à estatueta dourada para Fernanda Montenegro como melhor atriz. Na época, foi a mesma Sony Classics que se encarregou da campanha para o Oscar.
Mas havia no caminho brasileiro uma pedra italiana, chamada “A Vida É Bela”, de Roberto Benigni, que na época empolgou Hollywood a tal ponto que seu filme levaria não só o prêmio de longa estrangeiro como um hoje muito questionado Oscar de melhor ator, também para o cineasta-intérprete. E o prêmio de atriz que Montenegro perdeu para Gwyneth Paltrow, por “Shakespeare Apaixonado”, costuma elencar listas e mais listas dos maiores equívocos da premiação em todos os tempos.
“Muita coisa mudou. Na época, o Oscar do filme estrangeiro era o resultado da escolha de um número bem menor de pessoas, a maioria vivendo nos Estados Unidos. E 25 anos depois, esse número de votantes aumentou substancialmente e se descentralizou. A França, por exemplo, tem 200 votantes, quase o mesmo número de toda a América do Sul. Resta saber se essa descentralização favorece o cinema independente, ou estruturas industriais como os canais de streaming”, diz Salles.
A citação à França talvez não seja um mero exemplo aleatório, já que é dali que vem o longa que deve ser o maior oponente de “Ainda Estou Aqui” entre os concorrentes internacionais. Ainda é cedo para saber se será um pedregulho no caminho, como o longa de Benigni em 1999, mas certamente já é uma pedra no nosso sapato. O musical “Emília Perez”, de Jacques Audiard, fala sobre um chefão do tráfico de drogas latino-americano arrependido que resolve mudar de vida, assumindo o gênero feminino e se tornando irreconhecível. Ao que tudo indica, será o filme não hollywoodiano da temporada. Muito embora não deva ser tão apreciado por votantes menos pautados por questões identitárias.
O novo longa de Salles traz o toque humanista habitual do diretor, que nunca se propôs a causar maiores polêmicas temáticas ou estéticas em suas obras o que por vezes lhe causa críticas. Muito embora ele traga desta vez uma carga política muito mais assertiva do que em longas anteriores.
“Ainda Estou Aqui” é uma adaptação do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, em que o escritor narra um trágico episódio ocorrido em sua família na década de 1970. Depois de anos de tranquilidade, vivendo em um ambiente festivo com a mulher e os filhos, em uma casa de frente para a praia do Leblon, no Rio de Janeiro, o pai do escritor, o ex-deputado federal Rubens Paiva, interpretado por Mello, entra na mira da ditadura militar. Certo dia, é levado por agentes para prestar depoimento, e nunca mais volta para casa.
Sua mãe, Eunice, vivida por Torres, também seria levada, mas retornaria depois de mais de dez dias de duros interrogatórios, que tentavam levantar informações sobre membros da luta armada ajudados por Rubens Paiva. Só depois de certo tempo é que a família saberia que Paiva havia sido torturado e morto pelos militares, e o filme mostra como Eunice precisou lidar com a dor da perda do marido, a necessidade de se tornar o único porto seguro para seus cinco filhos e a luta para conseguir ao menos um reconhecimento por parte do governo de que Paiva não estava mais vivo.
“É difícil explicar o que torna um relato tão singularmente brasileiro subitamente universal. Talvez seja esse retrato íntimo de uma família proposto por Marcelo Rubens Paiva, num momento em que ela sofre um ato de violência de um Estado opressivo. Ou o fato de o filme ser ao mesmo tempo o relato de uma perda e uma história de superação, que Eunice Paiva representa”, afirma Salles.
A performance de Torres tem sido quase unanimemente citada como um dos pontos altos do longa. Apesar de ser lembrada pelo público brasileiro por personagens expansivas e cômicas, como a Vani de “Os Normais” e a Fátima de “Tapas e Beijos”, ela atua desta vez em chave oposta, bastante contida.
“Eunice é uma mulher dos anos 1950, que foi educada para ser perfeita, casar, ter filhos. Então ela tem todo aquele cerimonial da mulher da série Mad Men. E, ao mesmo tempo, ela tem uma inteligência muito além da de uma mulher que apenas vai ser uma parceira do marido e cuidar dos filhos”, disse Torres, na época do lançamento veneziano. No fim do longa, quando Eunice aparece idosa, é a mãe da atriz, Fernanda Montenegro, que assume a personagem.
Além da atuação das duas Fernandas, o filme tem colecionado elogios por mostrar o quanto regimes autoritários, como o brasileiro da época, podem gerar sofrimento a um povo. Mensagem conveniente em tempos em que lideranças de extrema direita ganham cada vez mais força mundo afora.
“O filme é um exercício de reconstrução da história pessoal [de Paiva], mas também coletiva. Tão precisa e tão atravessada pelo humano. Eu acho que as pessoas estão reagindo talvez a isso”, afirma Salles. “Mas chega sempre um momento em que um filme escapa de você. E começa a dialogar com uma coisa muito mais ampla, que é o público. E eu acho que isso justifica um pouco aquilo que a gente faz”, diz o diretor, que acrescenta estar feliz por a plateia internacional ter decodificado a especificidade brasileira da história e se comovido, como ele crê que a do Brasil também fará.
“Um filme só começa a existir quando é dividido por um público amplo na sala grande. Então, esse para mim é um momento que eu vivo quase como uma suspensão do tempo, sabe? A outra pessoa vai completar o filme.”
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– Elenco Fernanda Torres, Fernanda Montenegro e Selton Mello
– Produção Brasil, 2024
– Direção Walter Salles