SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em um vídeo, vemos Arthur Moreira Lima tocar o dificílimo “Estudo transcendental n. 10” de Franz Liszt. Em outro, acompanha Paulinho da Viola, que dedilha no cavaquinho seu “Choro Negro”. Em um LP lançado em 1985, o encontramos ao lado da Orquestra Sinfônica da Rádio da Polônia, em uma interpretação fantástica do “Concerto n. 3” de Sergei Rachmaninoff. Em outro, de 1984, mistura temas de Pixinguinha e Noel Rosa com peças de Heitor Villa-Lobos e Radamés Gnatalli.
Moreira Lima, morto aos 84 anos, deixou um legado musical vasto e multifacetado. A precisão e velocidade, combinadas com uma expressividade intensa, fizeram dele um dos grandes nomes do piano brasileiro. Seu forte era as obras virtuosísticas, seja de românticos como Frédéric Chopin e Robert Schumann, seja de modernistas como Modest Mussorgsky e Serguei Prokofiev. Como se não bastasse, gravou um álbum antológico ao lado do clarinetista Abel Ferreira e do conjunto Época de Ouro, além de colaborar com artistas da MPB como Nelson Gonçalves, Ney Matogrosso e Elomar.
Antes de embaralhar a fronteira entre o erudito e o popular, desagradando os puristas, Moreira Lima participou da edição de 1965 do Concurso Internacional Chopin, em Varsóvia. Ficou em segundo lugar, atrás apenas da argentina Martha Argerich, tida como uma das maiores de todos os tempos. Cinco anos depois, conquistou o terceiro lugar no Concurso Tchaikóvski, em Moscou.
A façanha de subir ao pódio dessas duas competições prestigiosas, jamais repetida por outro pianista brasileiro, o levou às principais salas de concerto da Europa. Mas não foi como solista de renome internacional que o pianista deixou sua marca: Moreira Lima não é Nelson Freire. Sua contribuição maior veio com as gravações da obra de Ernesto Nazareth, que revolucionaram a dimensão do compositor em nosso imaginário.
Seu primeiro LP de Nazareth, de 1975, gravado em apenas dois dias, se tornou um clássico tanto pelo alto nível da interpretação como pelo cuidado com a qualidade do áudio. O sucesso foi tanto que em 1977 foi lançado outro álbum. Juntos, eles revelam toda a riqueza da música de Nazareth, do vigor rítmico de “Fon-Fon” e “Espalhafatoso” à leveza ágil de “Escorregando” e “Apanhei-te, Cavaquinho”. A limpidez com que o pianista toca os tangos amaxixados seria do agrado do compositor, que aspirava aos requintados salões da elite carioca da Belle Époque.
O diálogo com a música popular se intensifica na década de 1980, correndo em paralelo a um projeto ambicioso, porém inconcluso, de gravação das obras completas de Chopin. Nem todos os trabalhos do período foram bem recebidos. Para alguns, faltava sutileza no pianismo derramado de Moreira Lima, que já não encontrava tanto espaço no circuito internacional.
Isso não o impediu de gravar, em 1982, aquele que considerava ser um de seus melhores trabalhos, “As 12 Valsas de Esquina de Francisco Mignone”. O álbum traz interpretações muito sensíveis das valsas ao mesmo tempo singelas e sofisticadas que Mignone escreveu na virada dos anos 1930 para os anos 1940. Passando por todas as 12 tonalidades menores, essas peças muito brasileiras, mas livres de nacionalismo propagandístico, evocam o lado noturno e melancólico da nossa musicalidade popular.
Outro ponto alto de sua discografia é “Arthur Moreira Lima interpreta Piazzolla”, de 1997. Elogiado pela BBC Music Magazine e pela revista Gramophone, o CD fez a crítica internacional se voltar ao pianista após um longo hiato. A não ser pelo dissonante “Tango-prelúdio”, dedicado a Moreira Lima, as obras do compositor argentino apresentadas aqui foram concebidas originalmente para o bandoneón, instrumento típico do tango. É impressionante como o pianista conseguiu mimetizar esse e outros instrumentos, demonstrando controle fino da sonoridade.
Moreira Lima passou os anos 2000 na estrada, percorrendo o país com seu piano Steinway dentro de um caminhão. Fora dos grandes centros, levou a centenas de cidades recitais que iam de Johann Sebastian Bach a Luiz Gonzaga, em um esforço democratizante. Por outro lado, sua presença nas salas tradicionais tornou-se cada vez mais rara.
Em sua última apresentação pública, em abril de 2023, subiu ao palco do Palácio das Artes, em Belo Horizonte, e tocou o segundo movimento do “Concerto n. 23” de Wolfgang Amadeus Mozart. Não por acaso, esse mesmo movimento foi tocado pelo pianista na primeira vez em que se apresentou acompanhado por uma orquestra, em 1949, quando tinha somente oito anos. É como se o artista, tão aberto e plural, quisesse concluir sua obra retornando ao início e amarrando tudo em um grande círculo.