SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os grandes projetos de hidrogênio verde que começam a nascer próximo ao litoral nordestino ainda estão em fase de planejamento e construção, mas quando ficarem prontos vão mirar o mercado internacional, sobretudo o europeu. Devido a dificuldades tecnológicas para transportar o insumo, é improvável que haja escoamento da produção para a indústria nacional, hoje localizada em grande parte no Sudeste.

Essa situação cria desafios para a tentativa do governo brasileiro de fazer com que o país exporte produtos de maior valor agregado, em vez de apenas insumos energéticos. O hidrogênio verde é considerado uma commodity por alguns especialistas e, à medida que os projetos no mundo ganham escala, seu preço tende a cair -cenário ainda restrito à próxima década.

De acordo com um levantamento feito pela reportagem com base em entrevistas próprias e dados da ABIHV (Associação Brasileira da Indústria do Hidrogênio Verde), o país tem hoje doze projetos avançados, sendo apenas um -bem pequeno- em operação. Desse total, apenas dois estão fora do Nordeste e só três estão sendo construídos especificamente para atender à demanda interna.

Todos os outros sonham com o mercado europeu. Por dois motivos: 1) as políticas de controle de emissões da União Europeia são mais exigentes e alguns setores, como as refinarias, já correm para adquirir hidrogênio verde até o final da década. 2) A Europa tem pouca área suficiente para aumentar sua geração de energia renovável, base da produção do hidrogênio verde. É de lá, portanto, que virá a maior demanda inicial.

“A gente não vai escapar de exportar commodity. Para destravar projetos a gente precisa ter contratos de offtake de longo prazo, e os primeiros que estão surgindo são fora daqui, porque a Alemanha precisa muito de hidrogênio verde e criou agências para fomentar a produção em vários países do mundo, inclusive no Brasil”, diz Luciana Costa, diretora de Transição Energética do BNDES.

Offtake é o termo técnico usado para contratos em que o comprador antecipa o pagamento do insumo, assumindo riscos, para propiciar a construção do projeto. A falta dessa figura no mercado atual, aliás, tem atrapalhado alguns negócios, inclusive na Europa.

Nesse cenário, é improvável que a primeira leva de grandes projetos de hidrogênio verde no Brasil seja para abastecer a indústria pesada nacional, como de aço, cimento, cerâmica, vidro e setor químico, as que mais precisarão do insumo.

Além disso, escoar o hidrogênio produzido no litoral nordestino para fábricas instaladas em outras regiões, inclusive do Nordeste, é hoje impraticável. Isso porque transportar o hidrogênio em forma gasosa só compensaria economicamente, segundo quem acompanha o mercado, se fosse em grandes volumes -nesse caso, porém, seria necessária uma rede de dutos mais extensa que a atual e o investimento não seria viável.

De acordo com a BloombergNEF, transportar hidrogênio via caminhão por uma distância superior a 100 quilômetros torna o insumo muito mais caro do que se transportado por gasoduto. E isso só seria viável se a produção fosse pequena. Já por cabotagem (navegação que faz rotas apenas dentro do mesmo país) seria caro demais.

Transportar o hidrogênio em sua forma líquida exigiria temperaturas abaixo de -252ºC -a temperatura mais baixa já alcançada no mundo foi de -273ºC.

Não é à toa que, em casos de exportação, o hidrogênio deverá ser convertido em amônia ainda no Brasil e reconvertido ao chegar à Europa -procedimento também caríssimo e que hoje não é viável em larga escala nem na Europa por falta de investimentos.

Luis Viga, líder da mineradora Fortescue no Brasil, está à frente da empresa para criar sua primeira planta de hidrogênio verde no porto de Pecém (CE). A expectativa é operar uma planta de 1 GW (gigawatt) até 2029, quantidade suficiente, por exemplo, para abastecer a produção de uma grande usina siderúrgica. Dos US$ 3 bilhões a US$ 5 bilhões previstos, 30% deve vir de capital próprio -a empresa negocia financiamento com o BNDES, assim como a Casa dos Ventos e a suíça Atlas Agro.

“Eu não escolho cliente; se tiver interno vai ser ótimo, mas é questão de viabilidade. A gente entende que o cliente externo está mais preparado para pagar o prêmio, porque o hidrogênio verde inicialmente vai ser mais caro”, diz Viga.

Já a brasileira Unigel mira o mercado de amônia verde e metanol como produto final. A empresa pretende vender o insumo para companhias navais -a amônia feita a partir do hidrogênio verde será usada como combustível limpo para frotas de navios.

A fábrica ficará em Camaçari (BA), próxima a duas plantas químicas da empresa. A ideia é construir uma planta de 60 MW (megawatt) capaz de produzir 60 mil toneladas de amônia verde ou 10 mil toneladas de hidrogênio. Mas o início depende do aval dos acionistas, já que a empresa está em crise financeira.

“A princípio, enquanto não houver demanda local, a nossa intenção será exportação de hidrogênio via amônia. Já temos uma prévia com o cliente; esse nosso produto seria transportado para um hub na Ásia e usado em bunker de navio”, diz Roberto Noronha, CEO da Unigel.

Uma alternativa para garantir a entrega do insumo à indústria local seria atrair essas empresas para regiões próximas às plantas de hidrogênio verde no país -o que ajudaria o Nordeste a se industrializar.

A francesa Qair, por exemplo, quer atrair indústrias para o porto de Pecém. A ideia é que essas fábricas consumam o hidrogênio produzido em sua planta de 280 MW até o final da década. Esse seria o segundo estágio do projeto da empresa, que pretende construir uma planta de 1 MW até o final de 2025 e duas de 2,24 GW na próxima década -as maiores focadas em exportação.

“A ideia é a gente desenvolver um hub para atrair negócios voltados a energia ou hidrogênio. Como hoje existe dificuldade para fazer exportação pela falta de infraestrutura, temos que criar um ambiente para que o cliente venha para cá”, diz Gustavo Silva, diretor de operações da Qair no Brasil.

Em tese, algumas indústrias já iniciaram essa rota. A ArcelorMittal comprou no ano passado a Companhia Siderúrgica do Pecém para facilitar seu processo de descarbonização. “Pecém é o foco futuro de hidrogênio no país e temos a intenção de usar a nossa planta como primeiro local para testes”, diz Guilherme Abreu, gerente geral de Sustentabilidade da empresa.

“Em termos de demandas e de volumes seria mais seguro, até do ponto de vista de segurança operacional, que as produções ficassem bem próximas aos consumos de hidrogênio. Porque fazer logística de hidrogênio não é como fazer de gás natural, já que as possibilidades de vazamento são maiores”, acrescenta.

Até por isso, no Sudeste, a White Martins criou uma estratégia diferente voltada para o mercado nacional. A empresa vai produzir hidrogênio verde próximo à planta da produtora de vidro Cebrace, em Jacareí (SP), e escoará o insumo via gasoduto para a companhia. A planta será de 5 MW e nem toda a produção vai para a Cebrace. A empresa já opera uma logística semelhante em Pecém para a indústria alimentícia.

“É mais fácil a planta de hidrogênio ser no Sudeste, porque o grid leva a energia para qualquer lugar e, com isso, é melhor instalar a planta de hidrogênio mais perto para não ter que transportar a molécula”, diz Gilney Penna Bastos, presidente da White Martins. “Por isso eu acho que o Sudeste ficará mais para a indústria interna e o Nordeste para exportação”, acrescenta.

Outra empresa que deve produzir hidrogênio verde no Sudeste é a Atlas Agro, que vai focar a produção de fertilizante verde em Uberaba (MG).

O ponto também foi defendido pela CNI (Confederação Nacional das Indústrias) em um estudo recente sobre o tema. “Eu não excluiria a importância da exportação, mas existe o outro lado da moeda, que é trazer uma tecnologia para o Brasil para que o país possa utilizar as suas vantagens comparativas e, dessa forma, agregar valor aos seus produtos”, diz Davi Bomtempo, superintendente de sustentabilidade da CNI.