SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os créditos iniciais já apontam uma interessante subversão. Em vez das cartelas, são Carla Camurati e Cristina Mutarelli, com spray rosa, a grafar os nomes do elenco e equipe em lençóis brancos pendidos entre árvores.

O nome da atriz e cantora Cida Moreira ganha um especial retoque de Camurati, que a torna “Moreyra” —grafia praxe nesse libertário “Onda Nova: Gayvotas Futebol Clube”, longa de 1983, dirigido por Ícaro C. Martins e José Antonio Garcia, exibido em versão restaurada nesta Mostra de Cinema de São Paulo.

“Onda Nova” não para por aqui. Integrantes da Democracia Corinthiana, o centroavante Casagrande irá a campo de maria-chiquinha, batom, maquiagem e vestido magenta enquanto o lateral esquerda Wladimir, com um chapéu de diva dos anos 1920, expõe a boca pintada em rouge e o glitter nas maçãs de seu rosto. O time adversário será de mulheres com os usuais shorts e camisas da indumentária masculina.

As cores ressurgem, assumidas, graças à restauração. Após décadas à deriva, vetado pela censura após sua exibição na sétima edição da Mostra, o filme recupera sua fotografia assinada por Antonio Meliande, a trilha sonora de Luis Lopes e toda uma direção de arte assinada por Cristina Mutarelli, que também atua como a goleira Lili.

Apesar de grafado na tela apenas como “Onda Nova”, já nos anos 1980 o filme receberia o subtítulo de “Gayvotas Futebol Clube”. “Não queríamos que houvesse uma confusão com o ‘new wave'”, diz Ícaro Martins, aos 70 anos. O longa forma uma trilogia com “O Olho Mágico do Amor”, de 1981, e “Estrela Nua”, de 1985, também codirigidos com Garcia, que morreu aos 2005, aos 50.

Sendo um filme da dupla, o travestismo nessa primeira sequência não soa como sensacionalismo, mas como uma total negação às normas e caretices. E uma indicação do que está por vir —uma total liberalização de tudo que possa ser traduzido como desejo, amor, rebeldia, sexo, pulsão de vida, sarcasmo e alegria.

“O Zé Antonio e eu sempre gostamos de brincar com essas referências fluídas de gênero”, diz Martins. “E o filme tem uma estrutura de painel porque originalmente seria uma série de TV não sobre um grupo de meninas tentando formar um time e levando a vida em paralelo a isso.”

O filme possui também um ir e vir que segue o fluxo da vida em casas, bares, vestiários, camas, bancos traseiros de carros em várias plagas de São Paulo. É numa dessas andanças que Caetano Veloso, o próprio, entra num táxi e transa com uma moça numa rota entre o Viaduto do Chá e o Bixiga —ou entre “Drifting” de Jimi Hendrix e “Dirty Love” de Frank Zappa. Depois, um ônibus se torna um musical cantado por Cida Moreira ao volante e as passageiras promovendo uma danceteria móvel.

Tal a moral do filme, a lógica é de esquetes livres trazendo experiências diversas, homens e mulheres fumando um baseado, transando e se beijando, numa fluidez rara até mesmo nas pornochanchadas. Foi justamente esse aspecto que incomodou a censura, que entendia liberdade como libertinagem.

“Ele passou na sétima Mostra, em 1983 e, ao mesmo tempo, foi enviado para a censura. A primeira comissão recomendou para 16 anos com cortes, a segunda para 18 anos sem cortes. Aí a Solange Hernandes, famigerada censora da ditadura, interditou o filme inteiro porque era imoral, ou seja, ela entendeu o filme. Ou você tinha filme de sexo explícito, ou filme sem sexo, e aí ‘Onda Nova’ ficou nesse vazio, caiu no limbo”, diz Martins.

É uma ousadia que se espalha por diferentes aspectos dos filmes, que abarca elementos da pop art, do neoexpressionismo de Basquiat, da alegria do “new wave” oitentista, músicas de Tim Maia e Eduardo Dusek até citações infinitas indo de HQ do Fantasma a pôster de “O Retorno de Jedi”.

No elenco, Camurati e Cida Moreira —imagem capitular do cinema paulista dos anos 1980— são tão definitivas quanto Vera Zimmermmann ou o artista gráfico e performer Patricio Bisso, que faz uma mãe conservadora e trans, coroando esse teatro de variedades que habita o cinema.

“Onda Nova” é um filme queer quando o termo nem estava na moda. “Ainda não existia a Aids, não havia também o projeto neoliberal e nem tinha surgido o fundamentalismo religioso”, afirma Martins. “Isso foi um tridente conservador que foi ganhando vulto.”

Por fim, após a primeira exibição do filme, neste sábado, o bar Soberano, point histórico do cinema da Boca do Lixo que foi reaberto como centro cultural, promoverá uma festa. E a lembrar que o lugar aparece numa cena emblemática do também libertário “O Olho Mágico do Amor”, e com a indefectível Carla Camurati.

Onda Nova: Gayvotas Futebol Clube

Quando Mostra de SP: Sáb. (19), às 21h, na Cinemateca; dom. (20), às 13h, no Reserva Cultural. Festa após a sessão, no sáb. (19), às 23h, no Bar Soberano – r. do Triunfo, 155, São Paulo

Classificação 18 anos

Elenco Carla Camurati, Cristina Mutarelli, Cida Moreyra

Produção Brasil, 1983

Direção Ícaro C. Martins e José Antonio Garcia