BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – Na noite de 18 de outubro de 2019, o então presidente chileno Sebastián Piñera –que governou o Chile em dois períodos (2010-2014 e 2018-2022) e morreu em fevereiro numa queda de helicóptero– estava numa festa familiar. Em uma pizzaria conhecida do bairro gastronômico de Vitacura, zona nobre de Santiago, Piñera comemorava o aniversário de um de seus netos quando foi avisado que a região da praça Baquedano, que divide os bairros ricos dos de classes média e baixa, estava de pernas para o ar.

Manifestantes estavam em confronto com carabineros (polícia chilena), havia quebra-quebra de estações de metrô, automóveis incendiados, e a repressão veio com balas de borracha e gás lacrimogêneo.

Piñera abandonou o festejo e se dirigiu a seu escritório. Num primeiro momento, a reação foi enérgica, e os relatos de abusos de direitos humanos que se concentraram nas primeiras semanas dos protestos foram por ele categorizados como obra de “agentes estrangeiros infiltrados” e de “falsos estudantes”. A então primeira-dama, Cecilia Morel, afirmou que os tumultos se pareciam com “uma invasão alienígena”.

Hoje conhecido como “el estallido” (a explosão) de 2019, as semanas e meses que se seguiram dali até março de 2020, quando o coronavírus esvaziou as ruas, não foram uma onda qualquer de manifestações. O movimento questionou o modo como a democracia vinha funcionando no país, pôs em xeque aspectos do modelo neoliberal, exigiu mudanças concretas em temas como aposentadorias e educação pública e expôs a desigualdade e o esquecimento em que viviam minorias indígenas.

Também deixou um rastro de violência: 34 mortos e mais de 3.000 feridos, dos quais 347 perderam total ou parcialmente a visão.

“Do ponto de vista político, o mais importante foi a polarização, a derrocada dos partidos tradicionais e a abertura de um espaço para a expansão da extrema direita”, afirma à Folha a analista Claudia Heiss, acadêmica da Universidade do Chile.

Hoje, os números mostram um país dividido quanto ao resultado desse processo. Segundo o Centro de Estudos Públicos, 55% da população dizia apoiar as manifestações em 2019; hoje, essa cifra é de apenas 23%.

Após o esvaziamento forçado do movimento com a Covid-19, um grupo de jovens políticos –entre eles Gabriel Boric, hoje presidente do Chile– começou a dialogar com Piñera. A solução acordada para aplacar os ânimos foi a de convocar uma Assembleia Constituinte para substituir a Carta promulgada em 1981 pelo ditador Augusto Pinochet (1915-2006).

O processo, porém, foi desastrado e cheio de obstáculos, culminando com a vitória daqueles que rejeitaram as mudanças.

A Constituição não mudou, mas o cenário político sim. Nas eleições de 2021, as principais forças sofreram uma forte desidratação, tanto a direita democrática representada pela aliança Chile Vamos, de Piñera, como a Concertação, coalizão de partidos de centro e centro-esquerda que governou o Chile desde a redemocratização, em 1990, até 2010.

Ganhou tração um novo partido de esquerda, a Frente Ampla, que renovou as bandeiras progressistas, incluindo as pautas de gênero e identitárias. Dali saíram líderes como o próprio Boric e Giorgio Jackson, que foi ministro de Desenvolvimento Social. Em muitos casos, os frente-amplistas fizeram aliança com o tradicional Partido Comunista do Chile, cuja figura mais popular é a ex-líder estudantil e atual Secretária Geral de governo, Camila Vallejo.

Do outro lado do espectro partidário, ganharam projeção o Partido Republicano e seu líder, José Antonio Kast, de ultradireita e que reivindica o legado de Pinochet. Kast simbolizou as vozes contrárias à proposta de uma Constituição que reconhecesse o Chile como um país plurinacional, promovesse maior inclusão ou aprovasse leis como a do aborto apenas pela vontade da mulher.

Naquele pleito, Boric saiu vencedor no segundo turno contra Kast, mas por pequena margem. Para governar, teve de deixar em suspenso alguns de seus projetos mais progressistas e realizar alianças com a direita, algo muito criticado por seus correligionários. O Partido Comunista rachou, e parte dele voltou para a oposição.

Para as eleições de novembro de 2025, nenhum nome da Frente Ampla surgiu por ora como mais forte para se candidatar –Boric não pode concorrer porque a reeleição consecutiva é vetada. Kast deve disputar novamente, e outro provável nome da direita é o de Evelyn Matthei, da tradicional UDI (União Democrática Independente), economista e filha de um militar que foi ministro de Pinochet.

Uma configuração que não se imaginava até aquela noite de Piñera na pizzaria.