BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O Banco Central afirmou, em resposta à reportagem via LAI (Lei de Acesso à Informação), que não há garantias de que o estudo que indicou que beneficiários do Bolsa Família transferiram R$ 3 bilhões via Pix para empresas de apostas esportivas online não esteja sujeito a falhas.

A divulgação do estudo, após ser encaminhado ao Senado, causou grande reação, inclusive no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que comanda a regulamentação do mercado das chamadas bets.

A autoridade monetária disse também não ter produzido documentos preparatórios para a elaboração da nota técnica, divulgada em 24 de setembro. Apesar de não fornecer informações sobre o material de apoio ao estudo, o BC cita termos como, por exemplo, “levantamento”, “dados de cadastro”, contradizendo a própria resposta.

O BC negou acesso a dados utilizados como subsídio para a elaboração da nota técnica sob a justificativa de estarem “acobertados por regras de sigilo ou de confidencialidade”.

Como mostrou a Folha de S.Paulo, o relatório deixou lacunas e provocou reações também de executivos do setor, que acusaram a análise técnica de não levar em conta o valor devolvido em prêmios. Segundo levantamento contratado pelo setor de apostas, beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 210 milhões com bets em agosto.

No total, o BC apontou que foram identificados R$ 21,1 bilhões em apostas em agosto via Pix. Desse montante, R$ 20,8 bilhões de transferências foram recebidas por 56 empresas.

De acordo com a autarquia, esse grupo mais restrito de companhias foi identificado com base em citações “extraídas de notícias de provedores de informação e de relatórios de consultorias que realizaram trabalhos sobre esse mercado de apostas, disponíveis na internet.”

No próprio estudo, o órgão dizia que as empresas categorizadas no setor de jogos de azar e apostas movimentaram uma parcela relativamente pequena em termos financeiros.

Em resposta à reportagem, a autoridade monetária diz que o mapeamento das empresas que atuam como bets também levou em consideração intermediárias de pagamentos que não estão classificadas no setor econômico de apostas.

Nesse sentido, o BC diz que “não há garantia de que a identificação não esteja sujeita a falhas”, o que coloca em dúvida as conclusões do estudo.

“Além disso, como se trata de intermediários, é, por vezes, difícil precisar o beneficiário final da transação. Dessa forma, a potencial divulgação da lista de empresas consideradas no estudo como bet pode trazer prejuízo comercial a empresas que potencialmente tenham sido indevidamente identificadas ou tendo sido atribuído um montante relacionado a atividade de bets diferente do real”, afirma.

Na nota técnica enviado ao Senado em setembro, o BC diz que “aproximadamente 15% do que é apostado seja retido pelas empresas”, com o restante sendo repassado aos vencedores. A instituição, contudo, não expõe os valores pagos como prêmios. As cifras são contestadas por executivos do setor.

Esse percentual, diz a autarquia, é resultado de um cálculo que considera o volume de transferência para as chaves Pix selecionadas (créditos) e o volume de transferências feitas pelos CNPJs (empresas) detentores das contas das mesmas chaves Pix para pessoas físicas (débitos).

Questionado sobre por que o estudo não considerou os valores que ficam nas plataformas à disposição dos apostadores, o BC disse não ter acesso a essa informação, também por meio da LAI.

Os números divulgados pela autoridade monetária levaram o presidente Lula a convocar uma reunião no Palácio do Planalto para tratar do tema com os ministros Fernando Haddad (Fazenda), Wellington Dias (Desenvolvimento Social), Nísia Trindade (Saúde), Ricardo Lewandowski (Justiça), entre outros participantes.

O governo avaliou que, antes de tomar medidas mais duras, vai acompanhar como as ações já anunciadas pelo Ministério da Fazenda podem impactar o mercado. Por ora, recuou, de bloquear o cartão do Bolsa Família para bets, como chegou a ser aventado.

Desde que o estudo do BC veio à tona, cresceu a pressão de bancos e varejistas por maior controle sobre as bets. Eles argumentam que a expansão das apostas esportivas online no Brasil tem desencadeado o endividamento das famílias.

À Folha de S.Paulo, o presidente da Febraban (Federação Brasileira de Bancos), Isaac Sidney, disse antever uma catástrofe com a formação de uma bolha de inadimplência. A CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo), por sua vez, ingressou com uma ação no STF (Supremo Tribunal Federal) contra a lei que regulamenta as bets.

A pedido da AGU (Advocacia-Geral da União), o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços elaborou uma nota técnica sobre o tema, rebatendo as informações de que os gastos com apostas provocaram queda no varejo e aumentaram o endividamento da população. A pasta também questionou as conclusões do BC sobre o tema.

Segundo relatos ouvidos pela reportagem, as limitações do estudo produzido por um órgão reconhecido por seu rigor técnico foram vistas com estranheza, enquanto a falta de atribuição de autoria do estudo gerou desconforto entre membros do governo.

O BC só concedeu à reportagem algumas informações relativas à metodologia adotada no estudo via LAI após recurso, sem muitos detalhes.

Segundo a autarquia, o estudo utilizou dados da base de pagamentos Pix, dizendo possuir informações de clientes individualizados, protegidas por sigilo bancário. Para identificar as pessoas em grande vulnerabilidade financeira, considerou as informações de beneficiários do Bolsa Família em dezembro de 2023 (última data-base disponível ao BC).

O processo de cálculo dos valores apresentado no documento utilizou “apenas contagens de forma consolidada por participação ou não no programa, sexo, idade, e se o indivíduo é ou não chefe de família”.

“Ressaltamos que não foi extraído nenhum dado individualizado que permitisse a identificação do perfil mais detalhado dos participantes do Bolsa Família”, acrescentou.

O BC diz ter um acordo de cooperação técnica com o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome para implementação de ações conjuntas na área de cidadania financeira.